A propósito dos quinhentos anos da ‘reforma’ protestante, protagonizada por Martinho Lutero, em 1517, muitas têm sido as iniciativas, também na Igreja católica. Depois do grande cisma do oriente, que no final do primeiro milénio dividiu os cristãos em orientais e latinos, a ‘reforma’ luterana afastou da Igreja católica milhões de fiéis, sobretudo na Alemanha e nos países escandinavos. Lutero não só se separou da Igreja romana, como também deu origem a inúmeras confissões cristãs, ditas reformadas ou protestantes.
Martinho Lutero, que tradicionalmente foi tido, pela Igreja católica, como o heresiarca responsável pela separação dos cristãos que, seguindo-o, abandonaram Roma, é agora considerado por alguns católicos como alguém providencial, como se tivesse sido o instrumento do Espírito Santo para a reforma da Igreja católica. Assim deu a entender o secretário-geral da Conferência Episcopal Italiana, Nunzio Galantino, quando, em Outubro passado, na romana Universidade Lateranense, afirmou que “a reforma iniciada, há quinhentos anos, por Martinho Lutero, foi um acontecimento do Espírito Santo”.
É verdade que todos os acontecimentos, também os negativos, são de algum modo consentidos pelo Espírito Santo, como expressamente afirma São Paulo, quando diz que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que Deus ama (cf. Rm 8, 28). O Criador escreve direito por linhas tortas, mas não se podem imputar à providência divina os pecados e misérias humanas. Graças à paixão e morte de Jesus Cristo, deu-se a redenção da humanidade, mas é óbvio que um tal efeito sobrenatural não absolve os verdugos do redentor: Judas Iscariotes, o Sinédrio, Pôncio Pilatos, etc. O mesmo se diga, mutatis mutantis, da ‘reforma’ luterana: embora tenha sido a ocasião propícia para um posterior esclarecimento, pelo Concílio de Trento, de alguns aspectos da doutrina católica, não se podem ignorar os efeitos catastróficos do cisma provocado por Lutero.
O cardeal Gerhard Müller opôs-se a este revisionismo histórico, num artigo agora publicado na ‘La Nuova Bussola Quotidiana’. Para este prelado, a ‘reforma’ luterana “teve um efeito contrário à vontade de Deus”: do ponto de vista da doutrina católica, a dita ‘reforma’ luterana não foi tal, “mas uma autêntica revolução da doutrina da Igreja”.
É verdade que muitos historiadores tendem a justificar Martinho Lutero, porque lutou contra o abuso das indulgências e denunciou os maus costumes que então se viviam na corte pontifícia. Mas, como esclarece o cardeal Müller, “abusos e comportamentos indignos sempre houve na Igreja e também hoje os há. Somos uma Igreja que é santa pela graça de Deus e pelos sacramentos, mas todos os homens da Igreja são pecadores e, por isso, todos precisam do perdão, da contrição e da penitência”. Se Lutero se tivesse limitado a pregar a reforma moral, ou a censurar os vícios de alguns dos cristãos do seu tempo, teria sido, com efeito, um venerável reformador, como o nosso beato Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga e figura grada do Concílio de Trento. Infelizmente, Lutero quis empreender uma mudança radical da doutrina cristã, alterando substancialmente o modo como, há mais de mil e quinhentos anos, se acreditava e vivia a fé cristã, dando assim origem a uma experiência religiosa inédita, divergente da tradição eclesial.
A propósito do ‘De captivitate Babylonica ecclesiae’, que Martinho Lutero escreveu em 1520, Gerhard Müller disse: “é absolutamente claro que Lutero abandonou todos os princípios da fé católica em relação à Sagrada Escritura, à Tradição apostólica, ao magistério do Papa, aos Concílios e ao episcopado. Opôs-se […] à noção católica de sacramento, como sinal eficaz da graça nele contida, substituindo a eficácia objectiva dos sacramentos por uma fé subjectiva”.
“Por tudo isto – escreveu ainda o cardeal Müller – não podemos aceitar que a reforma de Lutero possa ser tida como uma reforma da Igreja, em sentido católico. Uma reforma católica é uma renovação da fé vivida na graça, uma renovação moral e ética, uma renovação espiritual e moral dos cristãos; mas não a fundação de uma nova Igreja. Portanto, é inaceitável afirmar que a reforma de Lutero ‘foi um acontecimento do Espírito Santo’. Pelo contrário, foi contra o Espírito Santo, porque o Espírito Santo é que garante a continuidade da Igreja por meio do seu magistério, sobretudo o petrino: Jesus fundou a sua Igreja unicamente sobre Pedro (Mt 16,18), ‘a Igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade’ (1Tim 3, 15)”.
Não se pense, contudo, que esta intervenção do cardeal Müller se opõe ao movimento ecuménico, tão fortemente incentivado pelo Concílio Vaticano II e por todos os Papas do pós-concílio, nomeadamente o Papa Francisco. “Certamente – reconhece-se neste artigo – passaram quinhentos anos e não é hora de fomentar polémicas mas de procurar a reconciliação, embora não à custa da verdade. […] Se, por um lado, se deve reconhecer a acção do Espírito Santo nos cristãos não católicos que pessoalmente não cometeram o pecado da separação da Igreja, por outro não se pode mudar a história sobre o que aconteceu há 500 anos. Uma coisa é ter o desejo de manter boas relações com os actuais cristãos não católicos […], mas outra muito diferente é a incompreensão ou a falsificação do que aconteceu há 500 anos e do seu efeito desastroso, contrário à vontade de Deus”, a qual é, obviamente, a unidade eclesial (cf. Jo 17, 21).
Por sua vez, D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, considerou Lutero como “uma grande fonte de inspiração”, porque “procurava voltar às fontes bíblicas directamente”. Embora não pretendesse provocar uma ruptura na Igreja, a verdade é que foi responsável pelo cisma que, desde então, divide os cristãos latinos e que, infelizmente, ainda não foi superado.
Cristo quer a unidade de todos os que nele creem, mas na verdade. Escamotear a história, mesmo que seja com um louvável propósito ecuménico, não é aceitável. São Paulo encarecia aos primeiros cristãos a prática da caridade na verdade (cf. Ef 4, 15). Se à mulher de César não lhe basta ser honesta, pois deve também parecê-lo, com mais razão a Igreja, esposa de Cristo, deve rejeitar os revisionismos históricos, não só por serem contrários à verdade, mas também porque contrariam a tão desejada unidade de todos os cristãos.