Morreu o general Pires Veloso, e a imprensa conseguiu lembrar-se que, em tempos, lhe chamaram o “vice-rei do norte”. Prestadas as merecidas homenagens, talvez se justifique lembrar de que “norte” foi Pires Veloso o vice-rei. Em 1974, num país até então sujeito a censura e sem eleições livres, não existia ideia de que a população pudesse ter opções políticas, quanto mais que essas opções pudessem ser diferentes a sul e a norte. A ditadura tratara todos os portugueses com o mesmo paternalismo autoritário. As novas autoridades militares revolucionárias não mudaram demasiado a perspectiva. Quando se lembraram de marchar para o socialismo, lembraram-se também de ajudar o povo a acompanhar a marcha. Foi então que lhes ocorreu que talvez o “norte” fosse um caso especial. Não por que pudesse preferir outra filosofia política, mas por parecer, visto do Terreiro do Paço, mais distante, mais montanhoso, mais rural, mais católico, com mais sotaque – logo, mais “atrasado”.

Como a maior parte da população portuguesa residia a norte, era preciso fazer alguma coisa. Felizmente, os militares revolucionários tinham aprendido os rudimentos da “guerra psicológica” em África. Decidiram assim sujeitar o povo do norte ao tratamento até aí reservado aos indígenas africanos, e lançaram as célebres campanhas de “dinamização cultural”, com helicópteros a espantar rebanhos de ovelhas. Nesses tempos, os bandos esquerdistas rolavam à vontade por todo o país, e tanto impediam comícios do CDS em Lisboa como no Porto. Mantinha-se a esperança de um país homogeneamente socialista.

As eleições de 25 de Abril de 1975 foram a primeira grande surpresa. Afinal, os portugueses não queriam todos a mesma coisa. Os distritos a norte do Tejo votaram em massa, e votaram no PS e sobretudo nos partidos à sua direita, o PPD de Sá Carneiro e o CDS de Freitas do Amaral. O PCP, no auge da sua influência sobre as forças armadas e o Estado, teve votações ridículas nalguns dos distritos mais populosos do continente: em Viseu, por exemplo, 5 mil votos (2%), contra 100 mil para o PPD (44%), 50 mil para o PS (21%) e 40 mil para o CDS (17%).

Como se sabe, a votação animou o PS, o PPD e o CDS, mas nem por isso comoveu o PCP e a extrema-esquerda, que, sustentados nos quartéis de Lisboa, prosseguiram a ocupação do país. Depois do jornal República, foi a vez da emissora católica, a Rádio Renascença. Alguma coisa aconteceu então. O clero moveu-se, e com o clero, moveu-se o norte. Líderes religiosos como o arcebispo de Braga, D. Francisco Maria da Silva, ou o bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, chefiaram enormes concentrações de fiéis a protestar contra as arbitrariedades dos aprendizes de marxismo em Lisboa. Entre Julho e Agosto de 1975, milhares e milhares de pessoas juntaram-se às manifestações anti-comunistas nas cidades e povoações do norte. Foi um dos maiores movimentos de massas da história de Portugal e assinalou, perante a infiltração comunista no Estado, a identificação de uma grande parte da população com o modelo da democracia ocidental.

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anifestação anti-comunista em Braga, Verão de 1975

O norte era de facto outro país. Perante um sul de funcionários públicos e de latifúndios e grandes empresas — propriedades de velhas famílias protegidas pela ditadura, e depois nacionalizadas pela revolução –, estava este outro país de pequenos agricultores, pequenos empresários e emigrantes, na maior parte self-made men, ciosos das suas propriedades, ligados desde a década de 60 à Europa ocidental pelas exportações e pela migração, e unidos em comunidades ferozmente independentes, à volta das suas autoridades religiosas tradicionais. E curiosamente, era também a norte que estava a maioria da “classe operária”, não em grandes unidades industriais, mas em pequenas fábricas espalhadas pelos campos. Foi esse povo que, no Verão de 1975, saiu em massa à rua, ao toque de sinos, para contestar o comunismo fardado de Lisboa. Em pouco tempo, as sedes do PCP e da extrema-esquerda conheciam, a norte, o destino que, a sul, tinham tido as dos partidos não-socialistas.

Não era a primeira vez que isto acontecia. Muitos lembraram-se, em 1975, da “Maria da Fonte”, o levantamento popular anti-fiscal minhoto que provocara a queda de Costa Cabral em 1846. Em Lisboa, comunistas e extrema-esquerda, em pânico, chamavam aos nortenhos “reaccionários” e “terroristas”. Apareceram de facto grupos de aventureiros violentos, uma espécie de “che guevaras” de direita, entusiasmados pela ideia de uma “guerra de libertação nacional” contra o comunismo lisboeta. Mas a maioria da população foi aquela que aplaudiu Freitas do Amaral quando este explicou, no enorme comício com que o CDS encheu o estádio das Antas, a 18 de Outubro de 1975, que pretendia viver num país “em todos terão o direito de singrar e de subir na vida, podendo em qualquer momento, apenas pelo seu mérito individual, ascender aos mais altos postos do Estado ou deixar de trabalhar por conta de outrem para se estabelecerem por conta própria”.

Foi essa grande expectativa de promoção social pelo seu próprio esforço, numa sociedade livre, que o norte representou em 1975, num país onde era então suposto tudo vir a pertencer ao Estado e ser decidido pelo Estado. E foi esse norte que acolheu o brigadeiro Pires Veloso, quando tomou conta do comando da região militar, como o braço armado que até não tivera, mas também, pelas suas maneiras directas e desassombradas, como o símbolo da mítica franqueza popular nortenha perante uma Lisboa cortesã e florentina.

Hoje, comunistas e extrema-esquerda só se lembram do seu “povo” da cintura industrial de Lisboa, e preferem falar de Frank Carlucci quando explicam o fracasso da revolução. A memória da insurreição popular anti-comunista do norte é demasiado traumática para ser recordada, e no entanto, sem ela, os oficiais do “grupo dos 9”, Mário Soares e Carlucci não teriam tido as possibilidades que tiveram (como aliás têm reconhecido).

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Nos primeiros anos depois do PREC, foi no norte que esteve a maior parte da iniciativa privada, a exportar as roupas e a recolher as remessas da emigração que equilibravam as contas do país. Foi a norte que surgiram as primeiras grandes empresas e os primeiros bancos privados do pós-25 de Abril. Foi esse norte que deu à Aliança Democrática de Francisco Sá Carneiro, em 1979-1980, as suas maiores vitórias e a sua dimensão de movimento popular contra as limitações impostas à democracia pelo PREC. Foi esse norte que levantou o FCP como alternativa ao futebol “oficial” de Lisboa. Depois da década de 1980, a integração europeia nem sempre favoreceu a sociedade e a economia nortenhas, fê-las mais fracas e mais dependentes, enquanto os partidos políticos que tinham tido aí a sua base se instalaram no Estado lisboeta e na “Europa”. A democracia portuguesa perdeu com o fim do norte de Pires Veloso.