A poucas horas do jogo de Portugal, as televisões estão num frenesi absoluto. Multiplicam-se os directos e as pré-análises, impera a sofisticada adivinhação dos comentadores. A CMTV faz um directo de Paris, a partir de um restaurante português que, hoje, para espanto da repórter, serve arroz de cabidela. “Arroz de cabidela! Em Paris!”, grita a jornalista como se estivesse perante uma impossibilidade ontológica. Se uma sonda enviasse de Marte a imagem de um prato de jaquinzinhos fritos a surpresa da repórter não seria maior. Um cínico diria que onde há sangue, há sempre um jornalista da CMTV por perto. Mas como o prato do dia foi o gesto de Cristiano Ronaldo, num arremesso atabalhoado de um microfone para um lago, o fundamental é ouvir a opinião dos portugueses sobre o caso tremendo. No restaurante do arroz de cabidela, um emigrante manifesta-se desiludido com Cristiano Ronaldo. Aquilo não se faz a um microfone. Ronaldo, que é um exemplo para as crianças, devia ter mais cuidado. É uma pena, um rapaz tão talentoso, enfim. Mas quanto à avaliação jurídico-moral do gesto, a doutrina divide-se: há quem ache que esta é a maior ameaça à liberdade de imprensa desde o ataque terrorista ao Charlie Hebdo e há quem ache que o jornalista da CMTV também devia ter ido à água.
A SIC Notícias pediu ao Francisco e à Teresa, estivalmente sentados numa esplanada de Lisboa, que comentassem o assunto. Teresa acha que “estão todos muito nervosos” e que isso não é bom para ninguém. Francisco, por seu lado, afirma que esperava mais da selecção, mas di-lo com um sorriso de quem na verdade não está muito preocupado com o destino da equipa das quinas e muito menos com o dos microfones da CMTV. São coisas que acontecem e não há nada de tão transcendente que observado a partir de uma esplanada lisboeta numa tarde de calor abrasador não pareça uma ninharia. O repórter, a segurar o microfone com uma firmeza que me pareceu inabitual, devolve a emissão ao estúdio onde João Alves, o mítico “Luvas Pretas”, corrobora a opinião da Teresa e acrescenta que “ninguém trabalha bem sob pressão”.
Entretanto, e num inesperado golpe para as aspirações da nossa selecção, a SIC Notícias e a RTP interrompem a emissão futebolística e passam para o Ministério das Finanças, onde o ministro Mário Centeno, com um sentido de oportunidade digno dos melhores pontas-de-lança, explica aos portugueses o processo de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e anuncia que o Novo Banco não fará parte do onze inicial. A TVI 24, como último reduto da dignidade patriótica, ignora o ministro e dá a palavra ao ex-jogador Dani, que sobre a Caixa nada tem a dizer, mas avalia o onze inicial da selecção, “Vamos acreditar, vamos ter crença, nos outros jogos andamos a cruzar por cruzar, é preciso cruzar com convicção, temos de ter esta dinâmica de jogo muito implementada.” O repórter que conduz a entrevista, e que enverga uma camisola da selecção, agradece ao comentador a opinião “valizada” de quem, diz o jornalista francamente emocionado enquanto agarra o símbolo das quinas, “já vestiu esta camisola”.
A CMTV tenta a tarefa impossível de entrevistar os 15 milhões de portugueses espalhados pelo mundo. Um emigrante a transbordar de optimismo prognostica um 3-0 a favor de Portugal, mas quando instado a prever até onde a selecção pode ir refreia o optimismo e aponta como limite as meias-finais. Outro emigrante, em Londres, é ainda menos optimista: acha que Portugal ganha “só” por 2-1, golos de Ronaldo e Quaresma (corrige de imediato para um golo de Pepe, de cabeça), mas que não passa dos “quartos-de-finais”, “quarter-finals”, diz ele, não vá algum turista inglês ter sintonizado a CMTV por acaso.
Entretanto, o jogo começa e todas as horas de transmissões frenéticas que o antecederam desaparecem misteriosamente, como se nunca tivessem existido, como um transatlântico tragado pelo mar. Ou um microfone engolido por um lago.
Já agora
Quando o árbitro apitou para o final da partida estava 3-3, mas já a caminho dos balneários pode ter havido outro golo.
Porque é que vale a pena ver futebol? Por aquele passe de David Silva para Fàbregas, pela teimosia de uma bola que bate na trave e beija o poste, pela corrida de Perisic para o segundo golo da Croácia, pelos cânticos dos adeptos da Irlanda do Norte, pelos movimentos naturais de Iniesta que percorre o campo com a tranquilidade de quem se passeia por uma alameda de sombras frescas num domingo à tarde.
Hoje fiquei a saber que este Campeonato da Europa tem duas bolas oficiais: a Beau Jeu e a Fracas. Como é que esta informação me passou ao lado? Eu sou do tempo, aquele tempo jurássico em que os jogadores equipavam de 1 a 11 e não havia nomes nas camisolas, em que a bola oficial da competição era um dado relevantíssimo. Anos depois dos Mundiais de 1978 e de 1982, a Tango era uma relíquia. Um dos nossos amigos tinha uma, mas quando a levava para a rua não ousávamos jogar com ela. Aquele era um objecto para ser venerado e os nossos pés, os meus, sobretudo, eram indignos de lhe tocar. Depois ainda houve a Azteca, a Etrusco e a Questra. Creio que a Tricolore e a Fevernova passaram à história sem grandes lamentações e a Jabulani só ainda é recordada pelas queixas dos guarda-redes.
O golo de Messi contra os Estados Unidos é o melhor golo de livre da história do futebol, não é?