Muitos se espantam com a ascensão e vitória de Donald Trump nas primárias do partido republicano. Alguns, apenas veem neste trajeto um similar do populismo que grassa pela Europa. Outros, ainda, identificam o momento Trump com o arrivismo que sempre esteve presente nos atos eleitorais da democracia americana, rapidamente reabsorvido após a realização dos mesmos.

Em Cleveland, porém, poderá ter acabado de ver a luz do dia o novo ovo da serpente…

Estará em causa, não só um novo fenómeno político como, mais importante ainda, está em jogo a eleição do líder da maior potência mundial (e Trump pode realmente vencer). Assim sendo convirá que, para além da espuma mediática, para lá da imagem iconográfica e da forma do candidato, vejamos se há algo de mais substancial a que possamos dar um sentido ideológico.

Comecemos pelo populismo emergente, quer à esquerda quer à direita. No seu sentido mais imediato, há muito que o populismo – definido como a revolta das pessoas comuns contra as elites dominantes que se servem a si próprias – existe na política americana. Este o populismo tem sido de esquerda, procurando atingir banqueiros, capitalistas e as suas corporações (milionários e bilionários na linguagem de Bernie Sanders). Mas este também assumiu, muitas vezes, um rosto de direita. Nas décadas de 70 e 80, fê-lo sob a liderança de Ronald Reagan, que soube conjugar a aversão populista e, simultaneamente, libertária ao governo grande e irresponsável. Ou seja, se o populismo de esquerda teve tradicionalmente como alvo as grandes fortunas, a elite empresarial barricada em Wall Street, o populismo de direita (como o Tea Party) concentrou a raiva na burocracia e na elite progressista do sector público sedeada em Washington.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora até há uns meses atrás parecia que as eleições de 2016 poderiam tornar-se um confronto entre estas duas formas de populismo, no rescaldo da Grande Recessão de 2008. Venceria, pensava-se, quem melhor explicasse as causas da crise e dos anos de austeridade que se lhe seguiram. O que ninguém previa era a erupção, em 2015, de um novo tipo de populismo, mais acintoso e revoltado, um híbrido, a que podemos chamar: Trumpismo.

Politicamente, os antecedentes deste novo populismo podem encontrar-se na década de 90, aquando das campanhas presidenciais de Ross Perot e Pat Buchanan. Já do ponto de vista intelectual, o Trumpismo é claramente parecido com a conceção anti-estatista avessa à globalização e à imigração, ao estilo America First, propagandeada por vários conservadores tradicionais desde esse período. Não é por acaso que Buchanan, por exemplo, está atualmente entusiasmado com a candidatura de Trump. Só que, agora, em vez de descarregar a animosidade apenas na elite de esquerda, Trump ataca, simultaneamente, as elites conservadoras (daí o não apoio da direita religiosa de Ted Cruz ou dos neoconservadores como Robert Kagan). Em particular, o Trumpismo corta deliberadamente com o internacionalismo conservador que vem do tempo da Guerra Fria e com a ortodoxia defensora do mercado livre e da economia centrada na oferta que dominou as políticas republicanas desde 1980.

Mas afinal que fenómeno é este? Como catalogá-lo nas tradicionais categorias da ciência e teoria políticas? Numa primeira abordagem, podemos estar a assistir ao nascimento de uma nova categoria nunca antes vista na América: um grande partido ideologicamente confuso e nacionalista-populista, que combina elementos de esquerda e de direita. Nos seus traços gerais e no tocante a políticas públicas, é, em certa medida, semelhante à Frente Nacional em França, ao UKIP no Reino Unido, ao Partido da Liberdade na Áustria ou ao partido Alternativa para a Alemanha, bem como a outros movimentos semelhantes na Europa.

Muitos destes partidos emergentes ou renascidos são habitualmente classificados como sendo de direita, mas, do ponto de vista económico, a maioria é claramente estatista e defensora do Estado-providência. Quase todos respondem à estagnação económica endémica, à nova migração global e aos terroristas, com soluções protecionistas e ameaças de uso da força. A motivação do Trumpismo e dos seus equivalentes europeus reside, essencialmente, num fator: a convicção cada vez mais profunda de que as elites que governam (veja-se a vergonha de uma Europa liderada por Juncker…) não têm, nem a competência, nem a determinação, necessárias para melhorar as coisas.

O Trumpismo, com a sua aparente imagem de transgressão face ao sistema instalado, acabou por pôr em evidência uma cisão potencialmente perigosa para a política: já não a cisão clássica entre esquerda e direita, mas antes entre os que estão acima e os que estão por baixo na escala socioeconómica. E muitos dos que estão por baixo encontraram em Donald Trump uma voz para expressar a sua indignação contra a ignorância total e a condescendência das supostas elites que nos têm governado através do dito sistema (ele próprio assumiu – eu sou a vossa a voz – no discurso de nomeação como candidato na passada semana, o que não deixa de ser um paradoxo se atendermos a que estamos face a alguém que nasceu milionário e pelo caminho se tem dedicado a negócios ruinosos, em linha com o capitalismo mais selvagem).

Trump não apresenta propriamente uma agenda para a economia. Aliás, é comum mudar de ideias todos os dias. Mas dele emana uma atitude, uma aura de força bruta, um desprezo arrogante pelas subtilezas da cultura democrática que, segundo o próprio, conduziram à debilidade da América. As suas propostas, quase sempre contraditórias, apelam a sentimentos de rancor e desdém, salpicados de medo, ódio e ira. O seu discurso público consiste em atacar ou ridicularizar uma vasta plêiade de outros: muçulmanos, hispânicos, chineses, mexicanos, europeus, imigrantes, refugiados ou mulheres, os quais descreve como ameaças ou objetos de escárnio. O seu programa, quando aparenta ter algum, assenta essencialmente em torno da promessa de endurecer o tom para com os estrangeiros e os não brancos. Vai deportá-los, proibi-los de entrar ou subjugá-los.

Mas o seu grande trunfo e, simultaneamente, o seu perigo face aos tradicionais republicanos, reside em ter conseguido estabelecer contacto com o que os pais fundadores da república americana mais temiam e Alexis de Tocqueville tão bem identificou: as paixões populares desembestadas, a rua, o primado da multidão (curiosamente, a mesma multidão de que fala o guru da extrema esquerda europeia, Tony Negri).

Fala-se, a seu propósito, numa América dividida (The Economist). Muitas vozes conservadoras consideram que Trump não passa de um apresentador de TV, um mero gerente de casinos, um vulgar empresário de concursos de beleza ou, na pior das hipóteses, um protofascista intimidatório. Se já tínhamos o Putinismo na Rússia, agora corremos o risco de ter o Trumpismo na América, a confirmar a nova vaga global de pendor autoritário, antidemocrático e antiliberal.

Todavia, goste-se ou não, Trump e dalgum modo, podemos assumi-lo, o Trumpismo, simbolizam os tempos de hoje: o universo fugaz do realismo Online, das redes sociais, do reino do entretenimento, da simplificação consumista, os medos da tecnologia, a rejeição da diferença, no fundo, o fim do pensamento, a pura ação, a vitória do homo laborans.

E se este é futuro, felizmente que ainda não o vimos…

Professor universitário