Alterações climáticas

O aquecimento global? Faleceu. Agora o drama são as mudanças climáticas, o que significa que graças à malévola acção do homem (o homem é o sr. Trump) a temperatura tanto pode subir como descer. É um perigo em ambos os casos. No primeiro, os noticiários são quase exclusivamente preenchidos com “reportagens” imprescindíveis na praia, cada uma dedicada à opinião de dezassete banhistas sobre a água do mar (“óptima!”), o sol (“queima!”) e o Verão em geral (“espectacular!”). Há alertas imprescindíveis da Protecção Civil acerca dos cuidados a ter com o calor (beber água, usar roupa fresca), revelados com a solenidade adequada aos segredos do universo. E há fotografias imprescindíveis dos termómetros dos automóveis, processo através do qual o cidadão comunica a um mundo ansioso que na sua cidade estão 35º ou 38º.

No segundo caso, actualmente em curso, os perigos não diminuem. Os “telejornais” são quase exclusivamente preenchidos com “reportagens” imprescindíveis em praças do interior, cada uma dedicada à opinião de dezassete transeuntes sobre a neve (“é normal”), a roupa (“é muita”) e o Inverno em geral (“é isto”). Há alertas imprescindíveis da Protecção Civil acerca dos cuidados a ter com o frio (não sair à rua em pelota, não se lançar para cima de fogueiras). E há fotografias imprescindíveis dos termómetros dos automóveis, processo através do qual etc., etc., etc. Nesta época, há ainda o risco adicional de vermos o prof. Marcelo a perseguir pessoas sem casa, em princípio infelicidade bastante.

Se o homem, leia-se o sr. Trump, não fosse egoísta e pensasse nas gerações futuras, seríamos poupados a todas as calamidades acima descritas. A única calamidade restante seria a falta de assunto de que o “jornalismo” pátrio passaria a sofrer. Qualquer dia, os noticiários teriam de transmitir notícias.

Assédio sexual

Como sempre estimulados pelo exemplo do “estrangeiro”, os portugueses de alguma fama desataram a confessar o assédio sexual de que foram alvo. Não escrevi “as portuguesas” porque, numa subversão irónica do movimento #MeToo, aqui parecem ser os homens a liderar o rol de queixinhas. E as queixinhas chegam com travo típico: José Cid, uma das vítimas, foi assediado por um fadista; António Lobo Antunes viu-se perseguido por um professor de Moral.

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Nas denúncias indígenas de abuso não há produtores de cinema, realizadores de prestígio, actores famosos ou um mero humorista digno do nome. Os vilões referidos são fadistas, padres e, arrisco, barbeiros, beneficiários do RSI, vereadores com pelouro e funcionários da conservatória do registo predial. O nosso lastro histórico, por comparação à juventude dos EUA, também pesa, já que, aparentemente, as poucas-vergonhas em causa aconteceram por volta de 1951. E, embora tenham profissão, os pervertidos nunca têm nome (porque o país é pequeno e toda a gente se conhece e tal). Contas feitas, o #MeToo indígena reflecte as diferenças entre a Brandoa e Hollywood e, de serôdio, não diverte tanto quanto o americano.

Este é uma galhofa pegada, principalmente desde que Cristina Garcia, activista californiana incluída no artigo da “pessoa do ano” da “Time” (“As que quebraram o silêncio”), é acusada de apalpões e propostas indiscretas pelo assessor de um deputado (democrata, valha-nos Deus). Outro sujeito, um lobista do mesmo estado, garante que a senhora tentou tocar-lhe nas partes baixas. É possível que as delações sejam falsas, é possível que sejam verdadeiras, é provável que sejam irrelevantes – aliás, à semelhança de muitas daquelas que celebrizaram o #MeToo. Descontadas a violência e a opressão autênticas, que a histeria em voga só desvaloriza, sobram a vida e os gestos ridículos com que as pessoas frequentemente a levam. As pessoas do ano e as de todos os anos.

Identidade nacional

Portugal não se distingue pelos humoristas profissionais. Em compensação, fervilha de humoristas amadores. Há os jurados do prémio Camões, que o atribuíram a Manuel Alegre. Há Manuel Alegre, que aceitou o dito. E há António Costa, que foi à cerimónia de entrega dissertar sobre a língua portuguesa. Os jurados não sei quem são. O sr. Alegre é conhecido pelos textos de promoção ao futebolista Figo e ao BPP. E, como se dizia nos programas de variedades, o sr. Costa dispensa apresentações.

O que a alta comédia não dispensa é a parlapatice com que o sr. Costa abrilhantou o “evento”: “Cada língua representa um mundo e uma visão do mundo, é uma singularidade e uma pluralidade, é uma fixação e um movimento, é um passado, um presente e um futuro, é uma oportunidade e uma afirmação…” Quem fala assim não é gago. Nem, infelizmente, mudo. E quem fala assado? “Quero, neste momento, reafirmar o compromisso do Governo com a língua portuguesa, com os seus valores e as suas valências, da mais simbólica e poética à mais prática e instrumental”. Nem as “valências” faltaram (ainda que as sevilhas primassem pela ausência).

Não sei se o sr. Costa, já de si um portento “inchticional”, tem azar com as limitações de quem lhe escreve os discursos, ou se ele escolhe deliberadamente burgessos. Sei que exaltar a língua enquanto a torturamos com zelo tem a sua piada. E terá as suas consequências.

Bola

O presidente do Sporting, que não parece regular bem, comete uns desabafos sobre os “três olhos” ou a “mulher, gira ainda por cima” e os “media” precipitam-se a beber cada sílaba. O presidente do Benfica, que parece um portento de criatura, embrulha-se em incontáveis trapalhadas judiciais e, salvo excepções, os “media” nem tocam no assunto. Por uma vez, permito-me parafrasear o comentador especializado Rui Santos e perguntar, trémulo de aflição, para onde caminha o nosso futebol.