Nos últimos dias, muitos de nós temos assistido, estupefactos, à forma como, um pouco por aí, várias personagens supostamente respeitáveis, à esquerda e à direita, se digladiam, exigindo ruidosamente silêncio! – entre outras fórmulas de anulação do próximo – para impor o que serão os relatos “certos” da História ou dos valores que merecem ser expressos em público, os quais, na opinião dos próprios, serão aqueles que, obviamente, os mesmos defendem.
Num tempo onde não conseguimos viver sem polémica, a controvérsia mais recente é a que tem à cabeça o deputado Acenso Simões que, num exercício muito particular, defendeu no jornal Público ser necessário eliminar a versão da História dos Descobrimentos, tal como terá sido concebida pelos intelectuais do Estado Novo, por esta ser, grosso modo, uma forma de propaganda nacionalista, ainda hoje recuperada para suportar neofascismos. A desconstrução proposta por este reputado estratega eleitoral do PS traduzir-se-ia num conjunto de ações literais, como a destruição de brasões florais e do Padrão dos Descobrimentos, por não terem, e cita-se, “qualquer sentido no tempo de hoje por não serem elemento arquitetónico relevante, por não caberem na construção de uma cidade que se quer inovadora e aberta a todas as sociedades e origens”. No mesmo texto, Ascenso Simões qualifica a celebração da vida de Marcelino da Mata, militar condecorado, de aproveitamento saudosista por parte, e cita-se, “de quem lhe nega a paz eterna como salvação do seu passado abusador”. Não foram poucas as críticas lançadas a Acenso Simões, incluindo de correligionários do PS, destacando-se as de João Soares ou as do ainda líder do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos. Este último escreveu uma nota às redações onde, considerando que o deputado socialista cometeu um “insulto grave”, decidiu ele próprio revisitar métodos de tempos idos para, num belo exercício de submissão e numa lógica de “menino-queixinhas”, dirigir um pedido ao primeiro-ministro para que coloque os seus deputados “na ordem”, ou, “então, que abra a porta de saída aos que não sabem dignificar o lugar que ocupam”. Em resposta às críticas, Acenso Simões defendeu-se, afirmando ser a favor apenas de “ruturas epistemológicas” (quiçá, metafóricas), e não propriamente literais. Por falar em metáforas, Mamadou Ba, polemista profissional, não enjeitou a possibilidade de criticar o CDS-PP, por este ter apresentado no Parlamento um voto de pesar pela morte de Marcelino da Mata, que classificou de “sanguinário” e “criminoso de guerra que não merece respeito nenhum”. As posições de Mamadou Ba tiveram como resposta uma daquelas petições públicas de sofá, para que, e cita-se, “a Assembleia da República vote favoravelmente pela expulsão de Portugal de alguém que não se sente bem em Portugal nem com a nossa cultura e valores”. O CDS-PP não foi tão longe nas suas reivindicações, não deixando, porém, de exigir ao bom estilo do soldadinho de chumbo a “saída imediata” de Mamadou Ba do grupo de trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação, onde tem assento em representação da organização SOS Racismo. Um vivo debate no programa TVI24, com a presença do eurodeputado Nuno Melo, do jornalista Sebastião Bugalho, e da professora e investigadora na área da desigualdade e do racismo, Joana Cabral, veio animar ainda mais as hostes. De um lado, o sempre presente Mamadou Ba, acusou Nuno Melo de ser um “verdadeiro fascistoide” e um “cobardola”, chamando-lhe “marialva trafulha que mente com todos os dentes”. Do outro lado, nos quais me incluo, os que não deixaram de se divertir com a forma assertiva e cheia de Auctoritas como a professora Joana Cabral veiculou a sua forma de ver o racismo – legítima, no plano da opinião, ainda que supostamente validada cientificamente – como sendo uma verdade absoluta e factual, capturando os próprios conceitos e o sentido da linguagem e das palavras para esvaziar qualquer contraditório, aspeto já bem trabalhado pelo Abel Tavares, aqui, no Observador.
Marcelino da Mata, até há poucos dias uma personagem incógnita para muitos portugueses, é o mais condecorado militar do Exército português. Recentemente falecido, serviu em mais de 2.000 operações na Guerra Colonial. Após o 25 de Abril de 1974, foi detido e torturado por elementos da extrema-esquerda, exilando-se de seguida em Espanha, até que o contragolpe do 25 de Novembro de 1975 lhe permitiu regressar ao país. O militar, português de nacionalidade, foi proibido de entrar no território da entretanto independente Guiné-Bissau, sua terra-natal. A celebração da morte de um militar tão condecorado dificilmente pode ser vista como apologia do regime que, circunstancialmente, ele serviu, merecendo por isso todas as honras civis e militares. No seu funeral, celebrado pelo bispo das Forças Armadas, Rui Valério, e pelo capelão do regimento de comandos, Alferes Ricardo Barbosa, marcaram presença – e a meu ver, bem –, o Presidente da República (que, importa recordar, é o Comandante Supremo das Forças Armadas), chefias militares, representantes da associação de comandos, ex-militares, muitos usando a boina vermelha dos comandos, força de elite da qual Marcelino da Mata foi um dos fundadores, e ex-paraquedistas. Não podemos, porém, ignorar que Marcelino da Mata serviu o exército num período particular da nossa história recente, as suas condecorações foram atribuídas pelo regime anterior, pelo que é aceitável, a par das devidas homenagens, que haja espaço público para a crítica histórica e até pessoal, por parte daqueles que o veem como um símbolo do poder colonial. A História faz-se de contradição entre o heroísmo e a barbárie, não devendo ser um espaço de simplificação. As boas narrativas históricas são as que conseguem incorporar a complexidade e as tensões dos tempos idos, desconfiando das que projetam cenários, ora catastróficos, ora de apologia da harmonia. Capturar a História e as suas narrativas para as colocar ao serviço de ideologias, sejam elas de direita ou de esquerda, do herói ou do anti-herói, é uma tentação permanente, à qual, os que acreditam na liberdade, devemos saber resistir.
A História existe para ser debatida e conhecida, não apagada ou silenciada nos seus símbolos. Sendo por isso particularmente negativas as sugestões, “literais” ou “meramente epistemológicas”, que procuram “desconstruir” e “desmantelar” o Passado, mesmo que o seu simbolismo acarrete, para alguns, mensagens dissonantes face ao que, circunstancialmente, é o pensamento contemporâneo. Manter os símbolos é, aliás, importante para manter viva a História e o seu debate, e evitar a ignorância e o Esquecimento.
Aliás, a dificuldade que temos de construir “memória”, conhecendo e debatendo os factos do passado, nas suas afirmações e contradições, é um dos graves problemas dos tempos que vivemos. Conhecimento é hoje sistematicamente confundido com informação, e informação cada vez mais misturada com desinformação ou má opinião. Não faltam os que, não resistindo à tentação de destruir o que é intemporal e resiste à marca do tempo, tudo fazem para impor o efémero ou contingente. Este comportamento aparece altamente associado a uma imposição da simplificação, da ignorância, e da incapacidade de aceitar o Outro, nas suas diversas posições. A desvalorização da factualidade, do conhecimento, e das referências intemporais, é muitas vezes acompanhado de uma cada vez mais presente exigência de silenciamento, que põe em causa a liberdade de expressão e o pluralismo. Está hoje enraizada em vários setores da sociedade, e nos diversos quadrantes políticos, sendo o corolário da associação entre uma certa forma de estar que, nos últimos 30 anos, foi ganhando espaço nas academias, sobretudo de raiz anglo-saxónica, e o domínio cultural do online e do digital sobre a opinião publicada, seja ela literária ou de base científica. A ciência, que durante décadas se entendeu ser zona de experimentação não condicionada (que não pelos aspetos éticos), tem paulatinamente vindo a ser capturada nos últimos quarenta anos por narrativas ideológicas que fazem do conhecimento os seus cavalos de Troia. Há vários anos que na Academia assistimos a uma crescente proibição da investigação e do uso de linguagens que ponham em causa as narrativas do momento. Ora, esta “cultura de cancelamento” (“cancel culture”), enquanto forma moderna de ostracismo, condicionamento da linguagem, e definição dos temas ou expressões que podem ou não ser utilizados, tem vindo a ganhar uma dimensão preocupante, sendo profundamente castrador para quem recuse ser reduzido ao simplismo e à ausência de capacidade crítica, estando muito rapidamente a saltar os muros da Academia e da investigação científica, para intoxicar o debate público e os ambientes sociais e profissionais. A forma como, na mesma semana, assistimos a uma tentativa de assassínio do carácter do professor João Caupers, por publicações que terá feito há mais de dez anos, num contexto específico, ou a dignidade académica que foi dada a um suposto estudo que, como muito bem explicou o Carlos Maria Bobone, tortura o método científico para daí poder extrair as consequências morais desejadas pelo investigador (no caso, uma doutoranda da Universidade de Massachussets Dartmouth que defendeu, numa public lecture que, afinal, os Maias de Eça de Queiroz serão um romance racista), é sintomática do que estamos a viver – e do que aí vem.
Ao contrário de muitos, ainda assim, sou dos que acredita que o efémero, apesar dos danos que não deixa de causar, acaba sempre por cair face ao que é intemporal, ainda que o ruído possa momentaneamente ser ensurdecedor. A este título, recordo um conjunto de episódios que vivi, na minha primeira juventude, de passagem por uma academia americana de prestígio, próxima de Dartmouth e do Massachussets. Num gathering informal, após uma palestra, uma investigadora explicava-me com detalhe o âmbito da sua investigação. Tendo estudado a obra de William Shakespeare, teria concluído que o romance “Romeu e Julieta” seria afinal uma obra gay, e a desinteligências entre os Montecchios e os Capuletos seriam resultado da não aceitação do romance entre duas jovens apaixonadas. O próprio autor inglês seria uma mulher que, qual Joana D’Arc, teria assumido a figura masculina para se afirmar num ambiente de patriarcado. Perante o entusiasmo da jovem investigadora, e numa tentativa de ser empático, retorqui, “how creative!”. Levei, como se diz hoje em linguagem twitteira, um belo dum “block”. Afinal, a obra da investigadora não era um romance, como me tinha parecido, mas uma tese científica que a levaria à consagração académica. Semanas depois, o escritor Mia Couto visitou o campus para uma série de palestras. Numa delas, numa turma de African Studies, uma jovem afro-americana, que reconheceu nunca ter saído dos EUA (pese embora se apresentasse vestida a rigor, num estilo tribal contemporâneo), dirigiu um fervoroso ataque ao escritor moçambicano, acusando-o de ser um resquício do colonialismo, um falso africano que, além do mais, utilizava a linguagem colonial, o português, para dar corpo aos seus romances. A serenidade, correção e elegância com que Mia Couto, pacientemente, respondeu a todos os ataques que se sucederam, foi uma das maiores lições de tolerância e cosmopolitismo que recebi na minha vida.
Passados trinta anos, Romeu Montecchio e Julieta Capuleto continuam a encantar todos os que conhecem a sua trágica história de amor, inspirando na sua permanente contemporaneidade várias gerações de jovens e diversas interpretações, mais ou menos criativas, sem necessidade de reconstruir o romance original. Tão pouco consta que Shakespeare tenha mudado de sexo, ou que tenha sido necessário retocar a maquilhagem dos diversos auto-retratos que inspiraram os artistas que imortalizaram a sua imagem. As obras de Mia Couto continuaram a ganhar espaço de afirmação, tendo-se o biólogo moçambicano tornado num dos mais importantes escritores de língua portuguesa. Não prevejo, também, o silenciamento de Eça, por questões raciais, preocupando-me muito mais que se esqueça a sua obra e a sua leitura. Não voltei a saber nada da jovem investigadora que sonhava consagrar-se academicamente na projeção de duas tórridas Julietas em romance proibido, nem consta que Mia Couto tenha sido até à data expulso de África.
A todos os que, por estes tempos, ocupam ruidosamente o espaço público, exigindo silenciamentos, pouco mais tenho a dizer, que não roubar a deixa ao treinador Jorge Jesus, esse grande comunicador que, de uma forma criativa, e às vezes excessivamente livre, transforma as palavras em arte: “teikirize”, (“take it easy”, no original), minhas senhoras e meus senhores, vão com calma. Como diz o Povo, é a falar que a gente se entende.