Anna Politkovskaya foi morta no dia 7 de outubro de 2006, data de aniversário de Vladimir Putin. Três balas no peito e uma na cabeça. O corpo de Politkovskaya, 48 anos, caiu morto no chão do elevador do prédio onde vivia, na rua Lesnaya, em Moscovo. Junto ao cadáver, uma pistola – símbolo de um homicídio encomendado.
Politkovskaya foi jornalista de investigação no Novaya Gazeta, um pequeno jornal de Moscovo e um dos únicos independentes em toda a Rússia. Escrevia sobre o rumo que o país estava a tomar sob a liderança “sangrenta” do presidente Vladimir Putin, que considerava regime brutal e corrupto e por isso denunciou vários casos de violação dos direitos humanos. Para Politkovskaya, Putin representava os piores demónios do passado soviético, escreveu a revista Economist poucos dias após a morte da jornalista. A Rússia de Putin é um estado adoecido, acreditava.
Depois da condenação de Rustam Makhmudov e Ali Gaitukayev a prisão perpétua, amigos de Politkovskaya e ativistas dos direitos humanos continuam sem descansar. Pensam que os verdadeiros responsáveis ainda não foram identificados – e os críticos do Kremlin defendem que isso não acontecerá. Seguir o rasto desse crime poderia deixar os investigadores demasiado próximos do Governo russo, pensam. Até agora, não foram encontradas provas dessa ligação.
Muitos desconfiam de Ramzan Kadyrov, o presidente checheno pró-Kremlin que foi alvo de muitos dos artigos de Anna Politkovskaya. Dois dias antes de ser assassinada, deu uma entrevista à Rádio Liberdade onde falou da investigação que tinha em curso sobre Kadyrov e expressou o desejo de que este fosse julgado por atentados aos direitos humanos. O presidente checheno disse na altura do homicídio: “Não mato mulheres”.
Quatro dias depois da morte de Politkovskaya, Putin desvalorizou o seu papel: “Ela era conhecida entre os jornalistas, nos círculos dos direitos humanos e no ocidente, mas repito que ela não tinha influência na vida política. O seu assassinato tem efeitos mais negativos do que os seus artigos tiveram”.
Apesar da sua “influência mínima”, Politkovskaya recebeu várias ameaças de morte. Uma vez foi capturada e mantida em cativeiro pelas tropas especiais russas que prometeram atirar o seu corpo para uma vala. Em 2001, os editores no Novaya Gazeta assustaram-se com uma ameaça particularmente detalhada e quiseram que ela saísse do país. Politkovskaya viveu na Áustria por uns tempos. Em 2004, durante o cerco de Beslan (Ossétia do Norte) em que mais de 1000 crianças e adultos foram feitos reféns, sentiu-se doente depois de beber uma chávena de chá. Tinha sido envenenada e esteve quase a morrer.
Anna Politkovskaya estava consciente de que podia ser morta a qualquer momento, mas recusava falar desse tema nas suas conversas. Os jornalistas têm o dever de contar as histórias que importam tal como os cantores têm de cantar e os médicos têm de curar – dizia Politkovskaya, segundo a Economist.
Guerra da Tchetchénia
Em 1999, quando começou a segunda guerra da Tchetchénia, Politkovskaya fez reportagem nas vilas e cidades destruídas e falou com as duas partes, sem glorificar os rebeldes chetchenos ou diabolizar as tropas russas. Criticou os extremistas islâmicos que se aproveitaram do conflito e os generais russos e os seus colaboradores locais. Assistiu a torturas, a execuções em massa e raptos e escreveu sobre tudo isso.
O resultado desses anos de guerra (e de mais de 40 deslocações à região) está espalhado por três livros. Um deles – Chechénia, A Vergonha Russa – está traduzido em português. O outro livro com tradução portuguesa é A Rússia de Putin.
Era adorada por chechenos e russos e recebia inúmeros telefonemas: alguns davam-lhe pistas, a maior parte pedia-lhe ajuda. Queriam que interviesse junto de raptores ou encontrasse entes queridos desaparecidos.
As brechas na investigação
O julgamento do homicídio de Anna Politkovskaya foi, desde o início, um caos. Algumas provas desapareceram, outras são de tal forma contraditórias que parecem ter confundido os membros do júri, escreveu o Guardian em 2009. Em agosto de 2007, o procurador-geral da Rússia, Yury Chaika, anunciou a prisão de 10 pessoas relacionadas com o homicídio. Em junho de 2008, seis dos suspeitos foram discretamente libertados. Um mês depois sabe-se que o suposto homicida, Rustam Makhmudov, fugiu do país e se escondeu algures na Europa. Em 2011 foi preso na Chechénia.
Em novembro de 2009, quatro homens começam a ser julgados pelo envolvimento na morte de Politkovskaya. O juiz Yevgeny Zuvov anunciou que, de acordo com a vontade dos jurados, as sessões seriam à porta fechada e sem a presença de jornalistas. Um dos membros do júri ligou para uma estação de rádio e revelou que isso era falso.
No final do julgamento, em fevereiro de 2009, os quatro suspeitos – os dois irmãos do suposto homicida, Dzhabrail e Ibragim Makhmudov, um antigo agente policial de Moscovo, Sergei Khadzhikurbanov e um agente da FSB (serviços secretos russos), Pavel Ryaguzov foram absolvidos. Os acusados têm fortes ligações ao FSB (antes de ser presidente da Rússia, Vladimir Putin dirigia esta agência). Os dois irmãos estavam em contacto com a organização desde 2005 e o seu tio, Ali Gaitukayev, que esta segunda-feira foi, juntamente com Rustam Makhmudov, condenado a prisão perpétua, foi agente do FSB.
Algumas das provas mais importantes do processo desapareceram, escrevia o Guardian em 2009. Quando os investigadores chegaram ao escritório de Ryaguzov, o computador e os cartões SIM tinham desaparecido. O mesmo aconteceu com os registos telefónicos de Gaitukayev. E há uma história confusa sobre um dos vídeos utilizados pela acusação. No filme da câmara de segurança do prédio de Politkovskaya vê-se um homem de boné – o alegado homicida – a introduzir o código da porta de entrada e a entrar no prédio. Quando ele sai, tem um boné diferente. Para além disso, a figura desse homem revela que tem os ombros estreitos. Vídeos feitos com o telemóvel e mostrados em tribunal pelos advogados de defesa de Makhmudov mostraram que o condenado tinha os ombros largos. Será mesmo ele o homicida?
Os apoiantes da jornalista não têm dúvidas quanto às tentativas de encobrir o crime e pensam que “forças negras” interferiram na investigação. Em 2009, durante os argumentos finais, Karina Moskalenko, advogada da família Politkovskaya, disse que o homicídio tinha sido organizado “ao mais alto nível e não ao nível dos acusados”. O jornal Novaya Gazeta organizou uma investigação do homicídio da sua antiga jornalista, mas manteve-se sempre cauteloso quanto aquilo que foi sendo descoberto e não quis revelar publicamente os nomes dos dois suspeitos.
Filha de diplomatas, Anna Politkovskaya nasceu em Nova Iorque num meio privilegiado que lhe deu acesso a livros e a ideias proibidos na União Soviética. A revista Economist escrevia que apesar de ter uma personalidade difícil, Politkovskaya costumava dizer que, num país onde o presidente era o antigo líder do KGB, o mínimo que se podia fazer era sorrir de vez em quando. Para que se percebesse a diferença entre ele e os outros.