Os mais novos já nem sabem o que é. A palavra diz tudo: livre. O libero era o defesa que sobrava, que não marcava, que estava atento às coberturas e dobrava os colegas ultrapassados. O catenaccio, que levou o Inter de Helenio Herrera a vencer duas Taças dos Campeões Europeus, gritou aos sete ventos as maravilhas da inovadora posição. Franco Baresi será, provavelmente, o último grande libero do futebol italiano.
Mas é da Alemanha que chega a história mais conhecida. Franz Beckenbauer foi o libero de eleição. Era perfeito. Um génio na hora de defender, que sabia ler o pensamento dos adversários como poucos. À arte de defender juntou uns pés muito amigos da bola. O seu talento levou-o a alargar horizontes: defender apenas era redutor.
O Kaiser, como era conhecido, passou a ser o cérebro das suas equipas a partir de trás. A liderança também não morava em mãos alheias. Ele era o patrão, que coordenava a defesa e definia o melhor plano para atacar a baliza inimiga. Não era assim tão raro vê-lo em aventuras rumo ao meio-campo adversário. Um senhor jogador.
Esta escola teria seguidores. Os mais badalados foram Lothar Matthäus e Matthias Sammer. O último até foi o melhor jogador do mundo em 1996, ano em que venceu o Campeonato da Europa, no qual jogou a libero a guardar as costas de Helmer e Eilts. O alemão era duro e um líder em campo, a que juntava uma incrível queda para marcar golos: marcou mais de 80 na carreira. Matthäus fez quase o mesmo seis anos antes: venceu o Campeonato do Mundo com a Alemanha e foi eleito o melhor jogador do planeta. No entanto, nesta altura até jogava a médio. O libero era Klaus Augenthaler.
Mas o futebol evoluiu. A luta pelo espaço, equilíbrio e desequilíbrio sofreu a sua mutação e o libero foi esfumando-se com a chegada dos anos 90. Porquê? Tem a palavra Jürgen Klopp, treinador do Borussia Dortmund, numa entrevista ao El País em fevereiro de 2013.
“O grande impulso evolutivo dos princípios do anos 90 chegou com a mudança para a marcação à zona em função da bola. Já não se marcava o jogador. Na Alemanha, até 1994, se o teu jogador se mexia, ias segui-lo até ao balneário. A marcação à zona fez com que não tivesses de limitar-te a destruir o jogo contrário, mas que começasses a desenvolver o teu próprio jogo. Tardámos a implementar o 4-4-2.”
Aqui está uma boa explicação para o seu desaparecimento, mas que tal foi a experiência? “Foram perfeitos no seu momento. Tivemos Beckenbauer, Matthäus e Sammer. Jovens que faziam um jogo muito inteligente. Mas insistir nisso sem ter um organizador de jogo desde trás foi prejudicial”, explicou o treinador alemão.
MANUEL NEUER: O FUTURO CHEGOU
Tic-tac. O relógio não pára, nem as mentes que pensam o futebol. Pep Guardiola chegou ao Barcelona em 2008 e só desejava uma coisa: ter a bola só para si. O catalão queria ser protagonista. Sempre. Os defesas do Barça teriam de saber atacar e os avançados de defender. O que parecia uma história de embalar para os adeptos começarem a sonhar com os olhos brilhantes, acabou mesmo por acontecer.
O Barcelona tinha quase sempre cerca de 70% da posse de bola, jogando com uma defesa super subida. O domínio era total, mas havia sempre quem soubesse como explorar as costas da defesa blaugrana. Solução? O guarda-redes teria de jogar mais à frente. Valdés, que passou a ser um porto (quase sempre) seguro na hora de congelar a bola, resolveu muitos problemas aos defesas.
O tiqui-taca mudou-se em 2013 para a Baviera. Guardiola não sabe estar de outra forma. Quer dominar e passar um jogo inteiro a atacar. Não quer dividir a bola. Então o modelo passou a ser o mesmo: defesa subida, laterais quase como extremos e Lahm a fazer de Busquets. Manuel Neuer passou a atuar também mais longe da sua baliza, qual salvador na hora do aperto — verdade seja dita que com Jupp Heynckes também se chegou a ver.
https://www.youtube.com/watch?v=sOqLOTN75x8
Eis que chegámos ao Campeonato do Mundo, onde os guarda-redes têm sido protagonistas. Mas há um que tem estado em foco: Manuel Neuer. Porquê? Porque é o herdeiro ao trono que outrora foi de Beckenbauer. O selecionador alemão, Joachim Löw, adoptou o estilo do Bayern. Posse de bola e paciência entram pela primeira vez, arriscamos dizer, no vocabulário do futebol germânico.
O duelo contra a Argélia foi o pináculo da teoria que estamos a desenvolver — nós e o mundo, okay. Neuer é, provavelmente, o melhor guarda-redes do mundo porque tem uma grande qualidade a jogar com os pés, o que lhe permite começar as jogadas com outro rigor. A imagem em baixo mostra bem a importância do seu posicionamento adiantado — basta ver de onde faz os passes e se foram bem sucedidos (azul).
Mas foi na hora de defender que foi decisivo. A Alemanha esteve ambiciosa no papel, mas desastrosa na prática, perdendo muitas, muitas bolas. Foi aí que entrou em ação o super-herói Neuer. Que o diga Slimani…
Here it is, the most talked about heat map in history. Manuel Neuer. #GER pic.twitter.com/6cHthWZU2E
— Squawka (@Squawka) June 30, 2014
Durante os 120 minutos, o alemão fez apenas três defesas e percorreu quase seis quilómetros, contra os três e meio de M’Bolhi, o guarda-redes argelino. Neuer tocou 59 vezes na bola e garantiu uma taxa de 75% de acerto no passe. Bem-vindo, futuro.