Os mais novos já nem sabem o que é. A palavra diz tudo: livre. O libero era o defesa que sobrava, que não marcava, que estava atento às coberturas e dobrava os colegas ultrapassados. O catenaccio, que levou o Inter de Helenio Herrera a vencer duas Taças dos Campeões Europeus, gritou aos sete ventos as maravilhas da inovadora posição. Franco Baresi será, provavelmente, o último grande libero do futebol italiano.

1 Apr 1995:  Robertio Baggio (left) of Juventus takes on Franco Baresi (right) of AC Milan during a Serie A match at the San Siro Stadium in Milan, Italy. Juventus won the match 2-0.   Mandatory Credit: Allsport UK /Allsport

Franco Baresi, uma lenda do AC Milan, com Roberto Baggio (Allsport UK /Allsport)

Mas é da Alemanha que chega a história mais conhecida. Franz Beckenbauer foi o libero de eleição. Era perfeito. Um génio na hora de defender, que sabia ler o pensamento dos adversários como poucos. À arte de defender juntou uns pés muito amigos da bola. O seu talento levou-o a alargar horizontes: defender apenas era redutor.

O Kaiser, como era conhecido, passou a ser o cérebro das suas equipas a partir de trás. A liderança também não morava em mãos alheias. Ele era o patrão, que coordenava a defesa e definia o melhor plano para atacar a baliza inimiga. Não era assim tão raro vê-lo em aventuras rumo ao meio-campo adversário. Um senhor jogador.

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LEON, MEXICO - JUNE 3:  West German midfielder Franz Beckenbauer (L) fights for the ball with Moroccan Benkhrif Boujemaa as Mohammed El Filali (back) looks on  during the World Cup first round soccer match between West Germany and Morocco 03 June 1970 in Leon. West Germany won 2-1. AFP PHOTO  (Photo credit should read STAFF/AFP/Getty Images)

Franz Beckenbauer a passar no meio dos marroquinos Benkhrif Boujemaa e Mohammed El Filali no Campeonato do Mundo de 1970 (STAFF/AFP/Getty Images)

Esta escola teria seguidores. Os mais badalados foram Lothar Matthäus e Matthias Sammer. O último até foi o melhor jogador do mundo em 1996, ano em que venceu o Campeonato da Europa, no qual jogou a libero a guardar as costas de Helmer e Eilts. O alemão era duro e um líder em campo, a que juntava uma incrível queda para marcar golos: marcou mais de 80 na carreira. Matthäus fez quase o mesmo seis anos antes: venceu o Campeonato do Mundo com a Alemanha e foi eleito o melhor jogador do planeta. No entanto, nesta altura até jogava a médio. O libero era Klaus Augenthaler.

17 JUN 1994:  GERMANY''S MATTHIAS SAMMER TACKLES BOLIVIA''S JOSE MELGAR DURING THE OPENING OF THE 1994 WORLD CUP AT SOLDIER FIELD IN CHICAGO, ILLINOIS. GERMANY WON THE MATCH 1-0.   Mandatory Credit: Dave Cannon/ALLSPORT

Matthias Sammer a roubar a bola ao boliviano José Melgar no Mundial dos EUA, em 1994 (Dave Cannon/ALLSPORT).

Mas o futebol evoluiu. A luta pelo espaço, equilíbrio e desequilíbrio sofreu a sua mutação e o libero foi esfumando-se com a chegada dos anos 90. Porquê? Tem a palavra Jürgen Klopp, treinador do Borussia Dortmund, numa entrevista ao El País em fevereiro de 2013.

“O grande impulso evolutivo dos princípios do anos 90 chegou com a mudança para a marcação à zona em função da bola. Já não se marcava o jogador. Na Alemanha, até 1994, se o teu jogador se mexia, ias segui-lo até ao balneário. A marcação à zona fez com que não tivesses de limitar-te a destruir o jogo contrário, mas que começasses a desenvolver o teu próprio jogo. Tardámos a implementar o 4-4-2.”

20 Jun 2000:  Lothar Matthaus hangs his head at the end of his last game for Germany, the European Championships 2000 group match against Portugal at the De Kuip Stadium in Rotterdam, Holland.  Portugal won the match 3-0.  Mandatory Credit: Ben Radford /Allsport

Lothar Mätthaus desiludido após a derrota por 3-0 contra Portugal no Campeonato da Europa de 2000 (Ben Radford /Allsport)

Aqui está uma boa explicação para o seu desaparecimento, mas que tal foi a experiência? “Foram perfeitos no seu momento. Tivemos Beckenbauer, Matthäus e Sammer. Jovens que faziam um jogo muito inteligente. Mas insistir nisso sem ter um organizador de jogo desde trás foi prejudicial”, explicou o treinador alemão.

MANUEL NEUER: O FUTURO CHEGOU

Tic-tac. O relógio não pára, nem as mentes que pensam o futebol. Pep Guardiola chegou ao Barcelona em 2008 e só desejava uma coisa: ter a bola só para si. O catalão queria ser protagonista. Sempre. Os defesas do Barça teriam de saber atacar e os avançados de defender. O que parecia uma história de embalar para os adeptos começarem a sonhar com os olhos brilhantes, acabou mesmo por acontecer.

O Barcelona tinha quase sempre cerca de 70% da posse de bola, jogando com uma defesa super subida. O domínio era total, mas havia sempre quem soubesse como explorar as costas da defesa blaugrana. Solução? O guarda-redes teria de jogar mais à frente. Valdés, que passou a ser um porto (quase sempre) seguro na hora de congelar a bola, resolveu muitos problemas aos defesas.

O tiqui-taca mudou-se em 2013 para a Baviera. Guardiola não sabe estar de outra forma. Quer dominar e passar um jogo inteiro a atacar. Não quer dividir a bola. Então o modelo passou a ser o mesmo: defesa subida, laterais quase como extremos e Lahm a fazer de Busquets. Manuel Neuer passou a atuar também mais longe da sua baliza, qual salvador na hora do aperto — verdade seja dita que com Jupp Heynckes também se chegou a ver.

https://www.youtube.com/watch?v=sOqLOTN75x8

Eis que chegámos ao Campeonato do Mundo, onde os guarda-redes têm sido protagonistas. Mas há um que tem estado em foco: Manuel Neuer. Porquê? Porque é o herdeiro ao trono que outrora foi de Beckenbauer. O selecionador alemão, Joachim Löw, adoptou o estilo do Bayern. Posse de bola e paciência entram pela primeira vez, arriscamos dizer, no vocabulário do futebol germânico.

O duelo contra a Argélia foi o pináculo da teoria que estamos a desenvolver — nós e o mundo, okay. Neuer é, provavelmente, o melhor guarda-redes do mundo porque tem uma grande qualidade a jogar com os pés, o que lhe permite começar as jogadas com outro rigor. A imagem em baixo mostra bem a importância do seu posicionamento adiantado — basta ver de onde faz os passes e se foram bem sucedidos (azul).

4-4-2

Aqui uma imagem que traduz a exibição de Neuer contra a Argélia (imagem retirada do site fourfourtwo.com)

Mas foi na hora de defender que foi decisivo. A Alemanha esteve ambiciosa no papel, mas desastrosa na prática, perdendo muitas, muitas bolas. Foi aí que entrou em ação o super-herói Neuer. Que o diga Slimani…

Durante os 120 minutos, o alemão fez apenas três defesas e percorreu quase seis quilómetros, contra os três e meio de M’Bolhi, o guarda-redes argelino. Neuer tocou 59 vezes na bola e garantiu uma taxa de 75% de acerto no passe. Bem-vindo, futuro.