A incerteza sobre se Portugal será ou não sujeito ao procedimento de défices excessivos levou o Tribunal Constitucional a aceitar o corte nos salários dos funcionários públicos para este ano e para 2015. Por outras palavras, o Tribunal Constitucional abriu uma nova possibilidade de argumento: sempre que se preveja que o défice possa ficar acima de 3%, um Governo, no futuro, pode argumentar com a ameaça de procedimento de défice excessivo para fazer passar medidas de caráter excecional.
Esta foi a justificação do Ratton para deixar passar os cortes em 2014 e 2015, lembrando que para já não há qualquer argumentação para que os cortes continuem nos anos subsequentes. Mais, em 2016, o TC diz que deixa de haver justificação para estes cortes e que, caso eles permaneçam, “carecem de outro fundamento”. Tudo porque, pelas metas que estão acordadas, em 2015, o défice já tem de ficar abaixo dos 3%.
Foram as obrigações inerentes ao fim do memorando em 2014 e as condicionantes em 2015 devido ao procedimento de défice excessivo que fizeram com que o Tribunal Constitucional permitisse a continuação dos cortes nos salários dos funcionários públicos nestes anos. Mas os juízes, apesar de considerarem inconstitucionais a manutenção dos cortes de 2016 para a frente, deixam a porta aberta a que imposições futuras vindas da União Europeia, possam voltar a criar um quadro de “excecionalidade”.
“[…] Não é menos certo que a pendência de um procedimento por défice excessivo, que se segue a um período de assistência económica e financeira, ainda configura quadro especialmente exigente, de excecionalidade, capaz de subtrair a imposição de reduções remuneratórias nesse ano à censura do princípio da igualdade”,
pode ler-se no acórdão como justificação para 2015. Assim, caso Bruxelas venha a exigir no futuro novas metas a Portugal, pode abrir-se a possibilidade de o TC aprovar medidas que viabilizem esse cumprimento.
Estes cortes agora analisados são semelhantes aos que o anterior Governo de José Sócrates levou a cabo em 2011 e na altura a justificação dos juízes para a aprovação da medida não era tão específica. No acórdão que aprovou essa redução – assinado pelo agora presidente do TC, à época apenas juiz – a justificação era apenas a do reconhecimento de “uma conjuntura de absoluta excecionalidade, do ponto de vista da gestão financeira dos recursos públicos”. Agora, essa “excecionalidade” pode ganhar outra definição: o respeito pelas regras europeias que obrigam o país a ter défices públicos abaixo dos 3% (a questão da dívida pública é também referida, mas na referência ao Tratado Orçamental).
No entanto, o Tribunal Constitucional avisa que o cumprimento da legislação proveniente da União Europeia não define à partida como é que os Estados-membros devem chegar a essas matérias, lembrando que os princípios invocados da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança que têm servido de parâmetro ao Ratton são comuns à lei comunitária – respondendo a quem alega que o TC não tem em consideração os compromissos assumidos a nível comunitário.
Cortes para já sim, mas de 2016 para a frente deixa de haver “fundamento”
Este acórdão foi votado por larga maioria (11 em 13 na aceitação dos cortes até 2016; oito no chumbo a partir de 2016). E a argumentação também se dividiu. Para cada ano, o juiz relator apresentou argumentos diferentes:
- 2014 – Este ano já não há “margem orçamental que permita evitar ou mesmo reduzir o sacrifício imposto a um grupo de pessoas”, entendem os juízes. Mais, em 2014 há “um exercício orçamental condicionado ainda pelo esforço de consolidação orçamental” do final do memorando, não existindo assim razões para alterar o voto favorável a cortes nos salários, como em medidas anteriores;
- 2015 – O caso muda de figura pois a reposição de 20% dos cortes e a “redução do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas para as grandes empresas” – decidida na recente reforma do IRC -, é segundo os juízes, “evidenciadora de disponibilidade orçamental”, disponibilidade essa assumida pelas metas traçadas no Documento de Estratégia Orçamental, que vigora para o período (documento lembrado pelo TC). Assim em 2015 há, segundo o Ratton indica no acórdão, “espaço orçamental”. Mesmo assim, pesou mais o lado da consolidação orçamental, dizem os juízes que continua a haver uma “exigente meta do défice” e a “pendência de procedimento de défice excessivo”.
- 2016 a 2018 – Nestes anos deixa de haver “fundamento” para a continuação destas medidas e por isso os juízes esperam uma “reversão” dos cortes “num horizonte não muito distante”. Os juízes lembram no acórdão, que o país está obrigado a fazer tudo para cumprir as metas do défice (abaixo de 3%) e por isso, desaparece o argumento da “pendência” do procedimento de défices excessivos. Além disso, o Tribunal refuta também os argumentos do Governo que apontavam para uma reposição dos restantes 80% consoante “disponibilidade orçamental” até 2018, por ser uma indicação demasiado vaga fazendo que a os salários pudessem ficar inalterados nesses três anos. Para os juízes, outro problema é que os cortes continuavam a recair só sobre os funcionários públicos, o que no seu entendimento “ultrapassa os limites do sacrifício adicional exigível aos trabalhadores pagos por verbas públicas”.