A 24 de novembro de 2009 chegou a primeira (e única) estrela Michelin. Julio Biosca, chefe de sala e proprietário do Casa Julio, foi apanhado de surpresa e só acreditou na novidade quando viu uma fotografia que comprovava a presença do restaurante no livro encarnado. À partida não era óbvio o destino final do projeto de família que começou na década de 1940. Foi Julio, a quarta geração, que o converteu num restaurante de sucesso, situado numa aldeia entre Valência e Alicante, na vizinha Espanha, com cerca de 1.000 habitantes.

Ao início foi difícil convencer os locais a apreciarem doses mais pequenas e comida confecionada a mando do estilo gourmet. Mas tudo mudou quando o negócio familiar passou a constar no consagrado guia. Apesar da euforia, nesse dia não abriram as portas. Nem nas duas semanas que se seguiram. A equipa estava de férias marcadas e era assim que queria permanecer. As reservas, essas, não deram tréguas. Foram-se acumulando umas a seguir às outras, a par e passo com visitas de colegas e conselhos sobre tudo e mais alguma coisa.

A cada ano, nas vésperas de se anunciar a atribuição das estrelas, as noites eram passadas em claro. A afluência dos clientes era óbvia e a rotina mudou por completo. Quatro anos depois, Julio Biosca resolveu dizer adeus ao brilho Michelin, conta esta terça-feira o El País, ao pedir à organização do guia que não integre o Casa Julio na edição do próximo ano.

É por respeito ao guia que prefere ausentar-se dele. “O problema não é o guia em si mas o mundo que cria em redor dele. A loucura que entra pela porta. E quando toda a gente te diz que és o melhor, o dia em que te baixam a nota ficas maluco”, disse ao jornal espanhol. Julio Biosca já queria ter desistido em 2013, mas a carta nunca chegou a quem produz o guia, pelo que voltou a receber a estrela no ano seguinte.

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Atualmente, o restaurante tem menos dois empregados. A qualidade, garante o chefe de sala, não baixou, mas a carta está mais “simples”. O menu de degustação foi banido e alguns pratos mais antigos continuam a ter lugar de destaque na ementa. O proprietário explica que, agora, tem uma vida que vai mais ao encontro dos princípios gastronómicos atuais, longe da “grande constelação Michelin”.

Quando o “brilho” esmorece

O certo é que nem todos olham com bons olhos para a distinção em causa. Julio está longe de ser o primeiro a abandonar o grupo “selecto”. Um dos casos mais mediáticos será, porventura, o de Bernard Loiseau, o cozinheiro francês que se suicidou quando começaram a circular rumores de que o guia lhe ia retirar a terceira estrela — o mês era o de fevereiro quando Loiseau acabou o serviço à hora de almoço, arrumou o avental e foi para casa onde, no quarto e de porta fechada, disparou contra si próprio com uma arma de fogo. Sabe-se que o chef sofria de depressão e que, segundo relatos de 2013, um inspetor Michelin terá avisado o cozinheiro de algumas inconstâncias na cozinha.

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Outro nome que se junta à lista é o de Alain Senderens que, em 2005, optou por renunciar às três estrelas que lhe pertenciam — a distinção tripla aguentou-se por 28 anos. Segundo a Época de Negócios, Senderens não aguentou mais o quotidiano exigente no mundo da alta gastronomia. “Somos nós mesmos que nos colocamos essa pressão. Não temos o direito de errar”, cita a publicação brasileira. O chef queria a liberdade de inserir ingredientes menos nobres na ementa, além de reduzir drasticamente os custos fixos (estimados em 100 mil euros anuais) e a conta final dos clientes que facilmente ficava entre os 300 e os 400 euros. Coisa pouca.

Ferran Adrià é um dos casos mais recentes. Quando fechou o muito reputado El Bulli, em meados de 2011, perdeu as três estrelas a que tinha direito e no currículo desde 1997. E que direito: o Guardian chegou a apelidá-lo “o restaurante mais famoso do mundo”, cujas receitas praticadas refletiam uma clara adoração pela gastronomia molecular. Além disso, o projeto situado em Barcelona fora eleito por quatro vezes o melhor do mundo pela revista britânica Restaurant. “É como pedir para John Galliano [o estilista britânico que à data trabalhava para a francesa Dior] trabalhar numa fábrica”, cita a Época Negócios do Globo.

O El País fala ainda do belga Fredrick Dhooghe, que, em março deste ano, “devolveu” a estrela do seu restaurante, ‘ t Huis van Lede. A notícia foi avançada no perfil de Facebook, onde se pode ler: “A essência da cozinha em ‘ t Huis van Lede encontra-se no produto, preparado de acordo com a forma clássica e com respeito pelos nossos próprios valores e tradições gourmet. Percebemos que isto não é sempre compreendido por um grupo de clientes que esperam um espetáculo de estrelas e pontos de cozinha!”

Michelin ou, então, “a arte de bem receber”

“Ainda não há um guia mais credível do que o Michelin. É o guia que toda a gente adora odiar. O problema é quando se torna uma obsessão”. Quem o diz é Fernando Melo, crítico de comida e de vinho há cerca de 20 anos. Melo assegura que é uma questão de “notoriedade” que leva alguns chefs a limitar — como quem diz perspetivar — as suas carreiras nesse sentido. O mesmo acontece em território nacional.

A edição de 2015 do Guia Michelin, cuja primeira edição data de 1910, premiou 14 restaurantes portugueses, num total de 17 estrelas — um recorde absoluto. Entre os cozinheiros distinguidos, José Avillez — agora com o título de primeiro chefe português a conquistar duas estrelas graças ao restaurante Belcanto — é o protagonista de uma história feliz. Na vizinha Espanha, por seu turno, contam-se um total de 169 restaurantes, oito dos quais com três estrelas.

Questionado sobre a importância do cunho Michelin num restaurante, Fernando Melo não tem dúvidas: “Aumenta a popularidade”. Aproveita a pergunta para esclarecer que o inspetor Michelin está vocacionado para o universo hoteleiro e que não é “gastronómico”. Aliás, para o cargo a desempenhar, no currículo são precisos seis anos de direção hoteleira e zero experiência nas lides do jornalismo ou da crítica gastronómica.

“São grandes profissionais de hotelaria. Avaliam o que está no prato, claro, mas também uma série de outros detalhes”, acrescenta. O exemplo que dá é claro. Para que um restaurante seja galardoado com um brilho triplicado, os inspetores têm em conta a solidez financeira. E o que significa Michelin? “É a bíblia do ramo profissional a que chamamos de hospitalidade, a arte de bem receber e de satisfazer as pessoas”.