100 milhões de livros vendidos em todo o mundo. É como se a população inteira de Portugal, multiplicada por 10, já tivesse lido a história da relação sadomasoquista que transformou As Cinquenta Sombras de Grey num dos livros mais vendidos dos últimos tempos. A relação de dominação e submissão entre o milionário Christian e a estudante Anastasia gera amores e ódios, mesmo no que à qualidade literária e cinematográfica diz respeito. No dia em que a obra de E. L. James estreia nos cinemas, o Observador perguntou às escritoras Rita Ferro, Alexandra Lucas Coelho, Inês Pedrosa, Filipa Martins, Mónica Marques, e a Aida Suarez, que está a tentar abrir no Porto a primeira livraria de mulheres do país, de que livros e filmes eróticos mais gostaram.
Aida Suarez. “É bem provável que em algum dos volumes cada um de nós encontre a sua fantasia ‘dramatizada'”
“No que diz respeito a literatura erótica, a minha obra favorita é Vénus Erótica, de Anaïs Nin, porque consegue ter essa voz narrativa com toque de poesia e principalmente, estes relatos dão uma visão desde um ponto de vista feminino do erotismo e da pornografia, um território habitado maioritariamente por escritores e não por escritoras, principalmente até a década de setenta. A diversidade de personagens e desejos, as tonalidades dos espaços, as variadas descrições dos momentos eróticos e o sexo explícito, a exposição de variadas situações e propostas eróticas… E, principalmente, a voz narrativa de Anaïs Nin, fazem deste livro (pelo menos para mim) uma leitura suave mas intensa!
Como filme erótico vou falar dos últimos que vi e que gostei. “XCONFESSIONS” volumes 1,2 e 3, de Erika Lust, são curtas-metragens que exploram as fantasias das pessoas comuns, por isso é bem provável que em algum dos volumes cada um de nós encontre a sua fantasia ‘dramatizada’ ahahah!”
Rita Ferro. “Para ver perversões dos outros preciso de um guia genial, não é qualquer borra-botas que me corrompe”
“Não li nem quero ler ‘As sombras’, pareceu-me mal escrito e o tema não me interessa. Mas combinei com um grupo de amigos cínicos vermos juntos essa coisa, mal chegar ao cinema, para nos rirmos – tanta luta que travámos pela liberdade das mulheres, tanto divórcio, tanto movimento, tanta vítima de palmo e meio, para agora vermos milhões de mulheres com o onírico fixado em levar tareias? É uma piada histórica, uma realidade que ninguém estava à espera, mas que eu saberia explicar tim-tim-por-tim-tim. O filme só vale pelos milhões de mulheres que se consolaram vendo aquilo, como que rejeitando, paradoxalmente, o homem que contempla a sua autonomia e a respeita. Por outro lado, o aparato e o arsenal do sadomasoquismo sempre me fez pensar: ‘Ena, tanta coisa para atingir o prazer. A mim basta uma boa conversa'”.
Gosto de cenários, sim, mas não daqueles. Gostei das Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, porque a perversão era mais sofisticada, partia da manipulação psicológica e não exatamente da submissão à custa de uma vara. Gostei da Histoire d’O [livro de Anne Desclos mais tarde adaptado ao cinema], que é o mesmo em versão sofisticada, mas eu era uma miúda na altura e a perversão do filme era ser doce. Era um filme doce, onde as mulheres se ferravam como cavalos – ah! E, nesse aspecto, o filme estava bem feito. Não resistiu ao tempo, é hoje intragável. Acho o [Marquês de] Sade inultrapassável, porque nos mantém a ler as coisas mais ignóbeis – ‘As Sombras’ é para meninos de coros ao pé de qualquer dos seus livros – sem arredar pé.
Achei abjeto “O Último Tango em Paris“, a esta distância não ficou nada, zero, a não ser um bandalho fornicando uma miúda ordinária. Odeio todo o Pasolini, de A a Z, é das poucas situações em que não me ensaiei de me levantar da cadeira. Fiz um esforço, mas nunca consegui chegar ao belo – a culpa é minha? Já o Lars von Trier com as suas ninfomaníacas, bolas, tenho que confessar: aquilo mexeu comigo. É a mais poderosa lição sobre a sexualidade feminina que vi até hoje. Adorava saber a opinião da Teresa Horta sobre as ninfas. Quanto aos meus gostos, a regra é mais ou menos esta: sexo, só o meu. Para ver perversões dos outros preciso de um guia genial, não é qualquer borra-botas que me corrompe [risos]”.
Filipa Martins. “Encontramos em Roth a reflexão sobre os motores da atração sexual”
“Tendo em conta a temática do livro, e excluindo à partida qualquer avaliação literária de ‘As Cinquenta Sombras de Grey’, que não li, posso referir O Animal Moribundo, de Philip Roth. Nesta obra, há, como na maior parte dos livros deste autor, a utilização da sexualidade, do erotismo e dos instintos mais básicos como proteção sofisticada perante a moral e os medos. Encontramos em Roth a reflexão sobre os motores da atração sexual e como a sofisticação e a cultura podem ser catalisadores das fantasias mais carnais, ou mesmo tempo que o sexo – com arrebites de depravação – se materializa em antídoto (ou anestesia) para o receio da morte. A relação entre a personagem masculina – crítico de arte com mais de sessenta anos – e uma aluna na casa dos vinte é a materialização do verdadeiro ‘animal moribundo’, aquele que põe em causa o controlo da natureza humana e a nu a prevalência dos instintos mais básicos que se manifestam como efeito (mais do que como causa) de momentos da extrema fragilidade humana”.
Inês Pedrosa. “Às pessoas que gostem de ler sobre sexo violento, recomendo-lhes qualquer obra do eterno Marquês de Sade”
“Não sei o que é “literatura feminina” nem “literatura masculina”; a literatura digna desse nome escapa a catalogações de género, porque é universal. Do mesmo modo, todos os grandes livros estabelecem uma relação erótica de prazer e descoberta com os seus leitores. Mas se pensar em romances que abordem especificamente o tema do sexo, o que me ocorre imediatamente é O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, pela beleza e ousadia da imaginação e da escrita. Às pessoas que gostem de ler sobre sexo violento, recomendo-lhes qualquer obra do eterno Marquês de Sade, que é um especialista no tema e na escrita, coisa que a autora de As Sombras de Grey visivelmente não é, ficando-se por estereótipos e por uma escrita paupérrima.
No cinema, destacaria “Lady Chatterley” de Pacale Ferrand, adaptação do livro de Lawrence, ou “Intimidade“, de Patrice Chéreau, baseado em contos de Hanif Kureishi”.
Alexandra Lucas Coelho. “Não me revejo nem me interessa a ideia de literatura erótica”
“Não me revejo no conceito de ‘literatura erótica’. O sexo é um assunto como a morte, o amor, a infância, está misturado em tudo, faz parte da vida. Em O Meu Amante de Domingo [o mais recente livro da autora] há uma passagem contra essa ideia de sexo como um tema à parte”.
– Quem escreve sobre sexo fica reduzido a uma categoria. Se não for anónimo, é maluco, exibicionista, agente provocador ou filósofo, como o Sade.– Mas o Sade é filósofo.– O que estou a dizer é que, em geral, há a ideia de que o escritores-escritores não fazem isso, ou só no fim da vida, tipo posteridade, ou só como adenda picante, como se a pornografia fosse sempre o sótão ou a arrecadação, qualquer coisa à parte. Em ‘O Meu Amante de Domingo’.
Mónica Marques. “Eu li As Cinquenta Sombras de Grey e achei-o horrível”
” Li até ao fim para ver até onde era possível tanta parvoíce e pirosada. “Nove Semanas e Meia” [de Adrian Lyne] é o meu filme erótico. O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, é o meu livro erótico.