Foi criada em nome da transparência e da despartidarização da administração pública, mas a comissão independente que trata dos concursos públicos para os altos cargos do Estado (Cresap) está em cheque praticamente desde o dia em que nasceu. Depois de ter sido intimada judicialmente a revelar toda a fundamentação das decisões do júri, a Cresap é agora alvo de uma nova ação judicial. Em causa está a base sobre a qual incide a avaliação do júri, que, depois de analisadas as deliberações, parece assentar em critérios subjetivos e “ilegais”.
No final do ano passado, a Provedoria da Justiça garantiu ter recebido “diversas queixas”, apesar de a Cresap ter realçado que “apenas uma em cerca de 400 concursos abertos chegou a tribunal”. O Observador sabe que as impugnações ocorrem em ambos os registos de atuação da comissão – ou seja, tanto nos procedimentos concursais, onde a comissão avalia o currículo de centenas de candidatos até chegar a um top 3, como nos casos em que procede à avaliação de perfil do gestor público indicado pelo Governo para dar um parecer.
O caso de José Ribeiro é ilustrativo e foi o que teve mais eco em tribunal. Em outubro, o Observador noticiou que este candidato ao conselho diretivo da Administração Regional de Saúde do Norte tinha vencido um processo em tribunal que obrigava a Cresap a ter de passar a divulgar toda a documentação que fundamentava a escolha dos três candidatos finalistas em detrimento dos restantes. Agora, recebidos os papéis, o mesmo candidato volta a recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para, em última análise, pedir a anulação da decisão. Porquê? Porque diz que o júri muda as regras a meio do jogo, introduzindo critérios subjetivos “discricionários” – a que chama de “não-critérios”.
“Não obstante a justificação encontrada pelos membros do júri, concluo que há falta de fundamentação e que os critérios definidos são ilegais. Basicamente porque não se consegue perceber como é que os membros do júri atribuem a pontuação a cada um dos candidatos, mas sobretudo porque introduzem ‘a própria apreciação de cada membro do júri’ como subcritério, e a valer 50% do total da ponderação de cada parâmetro de avaliação”, explica José Ribeiro ao Observador, acrescentando que analisou a documentação junto de “vários juristas”.
Em causa, segundo se lê na ação interposta junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, que o Observador teve acesso, está o facto de, à parte dos 12 critérios de avaliação que estão previstos na abertura do concurso, ser atribuído um peso elevado à “própria apreciação de cada membro do júri”. Ou seja, torna a avaliação curricular dos candidatos mais subjetiva. “Distorce completamente a natureza e a finalidade dos subcritérios e com isso a avaliação dos candidatos”, lê-se na impugnação, onde se acrescenta que se está perante uma “violação dos princípios da legalidade, imparcialidade e proporcionalidade”.
Como exemplo, o candidato queixoso diz que num dos pontos da fundamentação, relacionado com o critério da Formação Académica, o júri considera para certos candidatos a licenciatura em Economia como área de formação preferencial quando, no aviso de abertura do concurso, a preferência era por Gestão e Direito. Ora, na ata lê-se que o júri considerou “Economia e Gestão como sinónimos”. “Quem lhe atribuiu tal poder?”, questiona o queixoso na carta que remeteu para o tribunal. O mesmo acontece com o critério da Experiência Profissional e o subcritério dos Anos de Trabalho, que, segundo José Ribeiro, “não foram quantificados em intervalos temporais medidos em anos”. O que implica que “cada membro do júri tenha considerado e ponderado como entendeu os anos de trabalho de cada candidato”, lê-se.
Selo de qualidade ou nomeação política validada?
O presidente da Cresap, João Bilhim, foi ouvido há duas semanas no Parlamento, como parte do escrutínio anual obrigatório feito pelos deputados às comissões independentes tuteladas pela Assembleia da República. Na audição, onde defendeu com unhas e dentes o modelo assente na valorização do “mérito” em vez da “cunha”, propôs alterações ao funcionamento da comissão de forma a esta ter mais poder legal para interferir na definição dos perfis para os cargos. A ideia, segundo Bilhim, é evitar que o Governo desenhe o perfil do candidato já a pensar numa pessoa em concreto para o cargo.
Mas não é essa a leitura que continua a fazer a oposição, que fala em subjetividade de critérios e no fracasso da tentativa de despartidarização da administração pública. Certo é que o fenómeno dos chamados ‘boys’ que costumavam ser nomeados para os cargos de topo nos institutos públicos sempre que havia mudança de Governo (e consequentemente de partido político) parece continuar. O caso que esta semana fez agitar as águas foi o das direções dos Centros Distritais da Segurança Social, cujas vagas foram ocupadas no âmbito de um concurso da Cresap: concorreram mais de 280 pessoas e os 14 dirigentes escolhidos pelo Governo, segundo noticiou o jornal de Negócios, são todos, sem exceção, filiados no PSD ou no CDS.
Mais: a maior parte já tinha sido nomeada pelo Ministério para o cargo antes sequer de haver concurso, em regime de substituição. Ou seja, com ou sem concurso mantém-se quase sempre os rostos escolhidos politicamente. Ao Negócios, a Cresap chegou mesmo a admitir que isto acontece em 90% dos casos. O que quer dizer que nove em cada dez dirigentes de topo que estão a ser nomeados pelos ministros para vários cargos, já ocupavam essas funções antes de se submeterem a concurso. Uma vez aberto o concurso, acabam por integrar a lista de três finalistas escolhidos pela Cresap e acabam por ser os escolhidos pelo ministro para a posição.
Este “problema” foi admitido pelo próprio João Bilhim na Assembleia da República. Sublinhando que a comissão precisa de “percorrer ainda um longo caminho para melhorar”, o presidente da Cresap admitiu que “houve situações em que [o Governo] abusou do regime de substituição, sem necessidade” e pediu aos deputados uma maior clarificação legislativa para contornar a questão.
Caso contrário, aquilo que a Cresap se orgulha de ser um projeto pioneiro que acaba com a cunha e que põe um “selo de qualidade” nas nomeações para os vários cargos de direção na administração pública, acaba por não ser mais do que a continuação das nomeações políticas, com a diferença de que são validadas por uma comissão independente.
Num total de quase 400 concursos públicos efetuados, estão ainda 95 vagas por ocupar, segundo dados da Cresap. Vagas que são os ministros das várias tutelas que têm de preencher, escolhendo um dos três nomes previamente selecionados pela comissão. Alguns destes processos já se arrastam há vários meses, até anos, o que constitui em si mesmo outra grande falha que a Cresap quer alterar impondo um prazo para o Governo tomar a decisão.