O Banco Espírito Santo (BES) ainda comercializou papel comercial de empresas do Grupo Espírito Santo (GES) depois de ser dada ordem para travar estas operações, que tem data de 14 de fevereiro de 2014. A comunicação desta instrução, que é um dos passos da estratégia de ring-fencing (barreira de proteção entre banco e grupo), terá demorado algum tempo a chegar à rede comercial, admite um ex-administrador do BES. Segundo Jorge Martins, “ter-se-á verificado alguma falha”, um “delay“, que terá de ser analisada em sede da auditoria forense pedida pelo Banco de Portugal ao BES. O gestor admite um “problema de comunicação interna” e diz que as operações pararam no dia 24 de fevereiro.

Jorge Martins cita o caso de uma emissão lançada em 13 de fevereiro e que só ficou concluída dias depois e já dentro do período de proibição do Banco de Portugal. Estas operações de venda de papel comercial realizadas à revelia das instruções representaram aplicações de 23 milhões de euros.

O gestor admite que o facto de a ordem ter sido dada numa sexta-feira poderá justificar uma comunicação mais lenta. A data de 14 de fevereiro era o limite temporal da garantia de reembolso assegurada ao nível da Espírito Santo Financial Group e para a qual foi constituído um penhor sobre a Tranquilidade, avaliado em 700 milhões de euros. A ordem travava a venda de papel comercial da ESI e Rioforte.

Jorge Martins e João Freixa, dois antigos administradores executivos do BES, foram ouvidos esta terça-feira na comissão parlamentar de inquérito ao BES e ao GES. Jorge Martins assegura que sempre houve intenção da comissão executiva em cumprir as ordens de ring-fencing. Para João Freixa, o ring-fencing implementado ao nível do banco e da Espírito Santo Financial Group (ESFG) e a provisão constituída para o reembolso teriam sido suficientes para salvaguardar o banco das perdas no papel comercial dos seus clientes se a ESFG tivesse cumprido a garantia.

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Os dois gestores testemunharam só terem tido conhecimento dos problemas nas contas da Espírito Santo Internacional (ESI) numa reunião a 4 de dezembro de 2013 em que foram informados de uma discrepância de 1000 milhões de euros nas contas. Adiantam contudo que foi assegurado que o problema seria resolvido em breve com aumentos de capital da ESI que permitiriam o reembolso da dívida comprada pelos clientes do BES. A partir dessa data, acredita João Freixa, o banco terá travado a venda de papel comercial da Espírito Santo Internacional no retalho, mas prosseguiu com a colocação de dívida da Rioforte.

Papel comercial representava em média 31% do património dos clientes no BES

No final do primeiro semestre de 2014, estavam por reembolsar 550 milhões de euros relativos a 2500 clientes, o que representava cerca de 31% do total de subscritores. São estes clientes que viram o reembolso do papel comercial travado pela resolução do BES e agora pelo Novo Banco. Segundo a apresentação feita pelos dois ex-gestores, estas 2508 pessoas teriam no final de junho de 2014 recursos totais de 1800 milhões de euros no BES, pelo que a aplicação em papel comercial representaria, em média, 31% do património financeiro total que estes clientes tinham à data no banco.

Os clientes do BES chegaram a ter 1720 milhões de euros em papel comercial no final de 2013. Estes produtos foram vendidos sem tomada firme e garantia de reembolso por parte do banco. Segundo João Freixa, estes clientes terão sido informados das características do papel comercial, embora não excluam que tenham ocorrido casos de venda defeituosa. Jorge Martins admite que os casos de má venda são pontuais e representam os dedos de uma mão e que foram situações de incumprimento de instruções do banco.

No final de 2013, havia mais de seis mil clientes com papel comercial GES, em particular da ESI e segundo os ex-gestores do banco, 77% do valor foi tomado por clientes de private banking e afluentes, ou seja, clientes com património financeiro significativo. A subscrição mínima era de 50 mil euros por cliente.

O papel comercial da ESI dominava estas aplicações com 1000 milhões de euros, mas foi sendo reembolsado e substituído por títulos da Rioforte. No final de maio de 2014, a exposição dos clientes tinha caído para 615 milhões de euros, dos quais 200 milhões eram dívida da ESI e 380 milhões eram dívida da Rioforte. As duas empresas estão insolventes.

O tema do papel comercial por reembolsar já colocou o Banco de Portugal e a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários em rota de colisão, depois de o supervisor bancário ter atirado a responsabilidade para a CMVM. A supervisora da bolsa reafirma que sempre defendeu o reembolso ou compensação destes clientes, lembrando que esse era o compromisso assumido pelo Novo Banco durante a gestão de Vítor Bento. Sob a liderança de Sotck da Cunha, o Novo Banco já avisou que não é responsável pelo reembolso, porque essa é uma responsabilidade do BES (banco mau). O gestor invoca diretivas do Banco de Portugal e assinala que o pagamento integral destas aplicações colocaria os rácios da instituição no limite mínimo. O Novo Banco está em processo de venda.

Quem ficou com os ganhos da recompra de obrigações? Ainda não se apurou

“Ficámos todos atónitos com a descoberta”, foi assim que Jorge Martins descreveu a reação à descoberta do esquema que foi revelado na recompra de obrigações do próprio Banco Espírito Santo. O provisionamento total da perdas com estes títulos, no valor de 1250 milhões de euros, foi feito por imposição do auditor nas contas do primeiro semestre. O BES teve de registar menos-valias para ajustar o valor de balanço destas obrigações ao preço do mercado e assumir nas contas o impacto do seu reembolso antecipado. Mas essas perdas, realçam, não foram causadas pela recompra, mas pela forma como estas obrigações foram concebidas e transacionadas. E quem ficou com os ganhos? Segundo João Freixa ainda não foi possível apurar quem se apropriou das mais-valias, que resultaram da diferença entre o preço e remuneração destas obrigações, entre o momento da colocação, revenda a terceiros e recompra pelo banco.

A auditoria a estas obrigações já permitiu concluir que terão sido usadas para substituir títulos de dívida do GES que estavam colocados em quatro veículos cujas ações preferenciais foram alienadas aos clientes finais. Neste caso, terão servido para contornar o ring-fencing que impedia o BES de financiar o GES que se terá apropriado das mais-valias. Só quem estava por dentro da montagem das obrigações saberia o impacto que teriam no balanço do BES, esclarece o ex-administrador, a propósito da decisão do banco em recomprar estes títulos.

As recompras foram feitas sob enorme pressão dos clientes, quando estes deixaram de conseguir colocá-las em mercado secundário, para proteger o franchising e o nome do banco. A Eurofin atuou como intermediário, mas os dois antigos gestores não conseguem precisar mais. João Freixa e Jorge Martins saíram da administração do Novo Banco em setembro, na sequência da saída de Vítor Bento, e a seu pedido.