O som do vento, o metro a passar, sirenes policiais, motores a jato, vidros partidos, automóveis em fuga. Os sons da cidade entram como modelos num desfile de moda, em ritmo alternado na mistura de palavras colecionadas por Karl Hyde. Artista multifacetado, dedica-se à pintura e à fotografia mas confessa-se enamorado pela poesia urbana. Diz que cada cidade tem um ritmo, uma voz própria. Apenas é preciso escutá-la. Com 57 anos de idade já viveu em 12 cidades diferentes.
Mais discreto, Rick Smith é o homem dos sete instrumentos, um explorador de sons que passa o tempo a experimentar software e dispositivos eletrónicos. Perfeccionista e mágico, como Hyde o descreve em entrevistas, Smith estabelece o equilíbrio entre o poema e a tecnologia. É ele quem afina as máquinas, o conjunto de equipamentos a que chamam “beast” e que tornam o espetáculo possível. Tocam esta segunda-feira no Luxemburgo e seguem depois para Amesterdão, numa longa lista de atuações onde se inclui a passagem pelo Parque da Cidade, no Porto, a 6 de junho.
Este ano celebram 35 anos de viagem, num percurso com várias metamorfoses, iniciado em 1980. Apesar de irmanados como Underworld, Rick Smith e Karl Hyde têm projectos individuais. Em 2013 Smith gravou a banda sonora do filme “Trance” de Danny Boyle, com Vincent Cassel e Rosario Dawson. Hyde estreou-se a solo em 2013 com “Edgeland”. Mais recentes são os frutos da colaboração com o ex-Roxy Music Brian Eno, “Someday World” e “High Life”, ambos lançados em 2014.
Em outubro passado, uma nova edição remasterizada do icónico “Dubnobasswithmyheadman”, assinalou o 20º aniversário do terceiro disco com assinatura Underworld. Foi contudo o primeiro da chamada fase 2 do projecto que passou a incluir a colaboração de um jovem corretor da bolsa, atleta e DJ de house, Darren Emerson. Considerado mais acessível do que os anteriores, alcança uma faixa mais larga e abrangente do espetro da música de dança. O tecido poético das letras de Hyde combina-se com o registo hipnótico e sussurrante da música produzida por Smith e Emerson. Aprecie o exemplar “Dirty Epic”:
A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, incluiu o espetáculo “Isles of Wonder”, num tributo às ilhas britânicas. A obra foi entregue ao realizador Danny Boyle que nomeou os Underworld para assumirem a direcção musical e produzirem a banda sonora. Deu origem a um álbum com 36 temas, onze são assinados por Hyde e Smith. O duo tem sido igualmente reconhecido pelas suas frequentes participações em bandas sonoras para filmes, tendo assinado temas que podemos escutar em “Sunshine: Missão Solar” ou “A Praia”.
Os Underworld nunca foram um número vulgar de dance music, de tal modo que se podem dar ao luxo de editar antologias. Em finais de 2011 colocaram no mercado “1992-2002 The Anthology” com três discos, uma coleção de canções que documentam aqueles 10 anos. Seguiu-se “A Collection”, outra compilação que reúne 16 temas num só CD.
Em 2010 “Barking” indicou um processo criativo diferente do habitual. O oitavo e mais recente álbum de estúdio foi desenvolvido numa plataforma colaborativa, com intervenção de outros DJs e produtores convidados. Casos de Dubfire, Dino Ramirez, Mark Knight ou Paul Van Dyk.
https://www.youtube.com/watch?v=MVF00QsGadM
Se falarmos de “Underworld” com um adolescente de 15 anos o mais provável é que ele apenas reconheça a saga de filmes sobre vampiros e lobisomens, iniciada em 2003, já com o 6º capitulo em produção. Ironicamente, a dupla de pioneiros da techno e do fenómeno rave foi buscar o nome ao título de um filme inglês, de terror, baseado na obra de Clive Barker e James Caplin, filmado em 1985. A trilha sonora foi composta pelo colectivo Freur, expressão adoptada para designar a banda cujo logótipo era apenas um rabisco. Era um quinteto new wave formado em 1982 onde já se destacavam Hyde e Smith.
Apaixonados pela linguagem do teledisco, que eclodiu em 1981 com a MTV, o talento artístico para associar a música a imagens estava bem patente nos primeiros registos da dupla. Em 1980, quando ainda estavam a estudar numa escola de artes, em Cardiff, no País de Gales, Rick Smith e Karl Hyde formaram os The Screen Gemz com outros três colegas. Esta seria, de facto, a primeira de muitas encarnações como Lemon Interupt ou Steppin’Razor, tendo sempre em Smith/Hyde o denominador comum.
Os Underworld são reconhecidos em todo o mundo como um dos projetos mais importantes da música eletrónica produzida na década de 1990. Mas a explosão deu‐se apenas em 1996. Foi o ano das Spice Girls, com as tabelas de vendas a exibir nomes como Robert Miles, Deep Blue Something, Fugees ou Mark Morrison. Fora deste circuito comercial surgia o filme de culto, realizado por Danny Boyle, Trainspotting. A expressão anglo-saxónica é usada, sobretudo na Escócia, para designar qualquer atividade inútil e sem nexo.
O filme apresentava-nos um escocês então desconhecido, com apenas 24 anos: Ewan McGregor no papel do alucinado Mark Renton, viciado em heroína e pouco interessado em monogamia. É a figura central do enredo que retrata as vivências de um grupo de amigos toxicodependentes, nos bairros marginais de Edimburgo em finais dos anos 1980. Elemento preponderante na narrativa, a banda sonora acompanhou o sucesso do filme, catapultando o single “Born Slippy.NUXX” para o 2º lugar da tabela britânica. Surgia nas cenas finais e ficou de tal modo “no ouvido” que desde então é obrigatória em todos os concertos. Curiosamente tratava-se de um “lado B”, remisturado e completamente diferente do original “Born Slippy” editado um ano antes, em 1995.
“Born Slippy” era o nome de um galgo. Smith e Hyde gostam de corridas de galgos e consta que ganhavam algum dinheiro nas apostas, numa pista perto de casa, em East London. Não é caso único. “Sappies Curry” e “Pearl’s Girl” também correspondem a nomes de galgos de corrida. A propósito de curiosidades, o sufixo “.NUXX” teve origem num erro informático. O sistema em que estavam a trabalhar acrescentou automaticamente a extensão “.nuxx” a todos os ficheiros no disco rígido. E assim ficou na galeria de clássicos da cultura DJ.
Haverá quem recorde a voz de Hyde a gritar “LAGER… LAGER… LAGER…” no que viria a tornar-se tema obrigatório nas setlists das noites de fim de semana, em tantas pistas de dança. A letra da canção corresponde ao monólogo de um bêbado, estado em que Hyde se encontrava quando a escreveu como chegou a admitir. A atmosfera musical de Trainspotting integra a lista das 25 melhores bandas sonoras de sempre, apontada pela revista Rolling Stone.
O génio criativo da dupla de produtores tem continuado a decorar as paisagens sonoras de um público fiel às suas origens. Ao mesmo tempo garante a atração da chamada geração milénio, seduzidas por um registo atual e futurista. Vão continuar a fazer bandas sonoras para filmes e para conduzir. Música e poesia combinadas de um modo sublime, como raramente as encontramos.
São noites de alta voltagem, num fluxo de energia que se torna recíproco à medida que o set avança. No palco, um duo irrequieto a manipular instrumentos, teclados e microfones. Na plateia uma massa em movimento que absorve e reproduz as vibrações de cada sequência musical. Conhecidos pela energia inesgotável das suas atuações, os agora cinquentões Underworld vêm fechar o NOS Primavera Sound 2015 no dia 6 de junho, com a promessa de não desiludir os ex-ravers, porventura hoje mais gordos e eventualmente carecas.
underworldlive.com / NOS Primavera Sound