Master Ilas Ali é um homem revoltado. Dono de uma loja de conveniência na esquina entre a Rua de São Paulo e a Travessa dos Remolares, ao Cais do Sodré, em Lisboa, está há dois meses à espera que a justiça lhe diga se tem mesmo de fechar o estabelecimento às 22h. Em janeiro, quando um despacho da Câmara Municipal o obrigou a adiantar a hora de fecho das 2h para quatro horas antes, apresentou uma providência cautelar que foi aceite, mas a autarquia contra-atacou com uma resolução fundamentada invocando interesse público e ele passou a ter mesmo de fechar às 22h.
Passaram dois meses e Master é um homem revoltado e à espera do resultado do recurso. “À espera não sei quanto tempo, até morrer…”, diz. Até morrer talvez seja um exagero, mas até a loja morrer já parece um cenário mais real. Desde janeiro, “renda igual, empregado igual, segurança social igual, [preço do] placard igual”. O que mudou: “vendia 400, agora vendo 200”. Isso já levou a que não tenha pago a renda um mês e que um dos empregados tenha ficado sem ordenado em fevereiro.
A revolta nota-se-lhe na voz e acentua-se quando fala das disparidades entre bairros lisboetas. “O Bairro Alto [as lojas semelhantes] está aberto até às 24h. Aqui não pode porquê?”, questiona, para depois descer à própria zona onde se encontra e apontar aquilo que diz serem incongruências. “Não entendo uma coisa: eu fecho às 22h, o Pingo Doce [a 200 metros] fecha às 23h”.
Quando a câmara contra-atacou a providência que lhe deu razão, foi invocado o “ruído” e a “aglomeração de pessoas à porta do estabelecimento” para que fechasse às 22h. Um argumento que não colhe junto de Master Ali, que olha para os bares próximos e os vê fechar às 2h, 3h, 4h e 6h e não entende como há tanta diferença de tratamento. “Esta lei não é igual para todos, é para foder as pessoas”, conclui.
O mesmo sentimento é partilhado por Simerjit Singh, dono de duas lojas de conveniência em plena Bica. “Mais de quatro ou cinco mil euros” é quanto o comerciante calcula que já perdeu nos dois meses em que teve de fechar todos os dias quatro horas mais cedo. O negócio, diz, está “muito mal” e houve “entre 60% a 70%” de quebra nas receitas. Singh pensa mesmo que, caso a situação não se altere brevemente, “a única maneira é fechar o negócio”, fazendo perder um investimento de perto de 40 mil euros e atirando pelo menos quatro pessoas para o desemprego.
Moradores reúnem-se em associação
Se as lojas de conveniência foram as mais afetadas pelo despacho que a Câmara Municipal de Lisboa fez entrar em vigor a 23 de janeiro deste ano, os pequenos bares também dizem ressentir-se. Os estabelecimentos sem espaço de dança do Cais do Sodré, Santos e Bica passaram a fechar às 2h durante a semana e às 3h ao fim de semana, além de não poderem vender álcool para a rua a partir da 1h. Quando perguntamos a Maria da Graça, do Cantinho do Prazer, no Cais do Sodré, como está o negócio, as palavras saem-lhe de rajada. “Péssimo. Horrível. Os negócios baixaram e de que maneira”, comenta, enquanto abana a cabeça. Comerciante no Cais do Sodré há 30 anos, admite que a zona está bem melhor hoje do que outrora, mas nunca teve tantas dificuldades de fazer receita.
Além do dinheiro que não entra, Maria da Graça e o companheiro, dono do espaço, tiveram de dispensar um empregado e pedir aos outros dois que só venham aos fins de semana. Antigamente, dizia: “Os índios já lá vêm”. Era quando os bares do Bairro Alto fechavam e os noctívagos vinham dar movimento à casa. Agora, que o Bairro fecha à 3h e o Cais também, nada cai para o seu lado.
Cristóvão Caxaria, do bar Quero-te no Cais, tem um discurso muito semelhante. Desde janeiro, verificou uma “quebra de faturação brutal”, entre os 30% e 40%, que prevê que se acentue com a chegada do tempo quente. “O balanço é claramente negativo”, diz o empresário, que adianta que foi apresentada uma providência cautelar que está na mesma situação da de Master Ali: à espera de resposta.
Quando o vereador Duarte Cordeiro – que o Observador tentou contactar, sem sucesso – criou o despacho de redução de horários, fê-lo em nome dos moradores. Mas estes também não parecem contentes. Que o diga Isabel Sá da Bandeira, do movimento Aqui Mora Gente, prestes a tornar-se uma associação com peso jurídico. “Na sexta-feira vamos fazer a escritura”, diz, depois de já ter dito que “está tudo igual, tudo na mesma, a caminhar para pior”. As queixas que lhe ouvimos hoje são semelhantes às que vimos ouvindo há tempo. “Está insustentável”, comenta, acrescentando que, mais cedo ou mais tarde, “alguma coisa tem de ser diferente”: ou o Cais do Sodré é um bairro habitacional ou é um bairro de diversão. Como está, “não é sustentável”.
“Gosto imenso do bairro, gosto da luz, do prédio… Virou este inferno nos últimos quatro anos e a câmara não controla. Isto é uma vergonha”, desabafa. “Vamos fazendo o que podemos, mas temos a nossa vida”.