Título: Morada
Autor: Rui Pires Cabral
Editora: Assírio & Alvim
Páginas: 384
Preço: 19,90€
No prefácio da antologia Poetas Sem Qualidades, obra de 2002 que colocou Rui Pires Cabral nessa vaga de novas vozes que ambicionavam cartografar de forma naturalista o real urbano do fim do milénio, inevitavelmente desencantado, depressivo onde nada mais restava aos poetas senão decantar melancolias, qual Baudelaires do final do século XX, o poeta Manuel de Freitas escrevia:
“A um tempo sem qualidades, como aquele em que vivemos, seria no mínimo legítimo exigir poetas sem qualidades. Curiosamente, estes últimos parecem ser não apenas uma espécie rara, como pouco apreciada. Sinal dos tempos, poder-se-ia concluir, evocando de passagem a distracção fundamental que caracteriza, segundo Walter Benjamim, os apetites das massas. Foi ainda Benjamim um dos primeiros a constatar que a qualidade passou a ser, nas sociedades industrializadas, sinónimo de quantidade. Seria razoável supor que aqueles que menos confortavelmente enfrentariam esta situação seriam os poetas, até porque — ao contrário do que parece suceder com os romancistas — não há por aí as máquinas de produzi-los serialmente.”
Hoje, 13 anos depois, olhamos esta Morada que a Assírio & Alvim (uma chancela do conglomerado editorial Porto Editora) lançou em edição luxuosa, capa dura, ilustração feita por encomenda, e perguntamo-nos: os poetas sem qualidades assumiram finalmente o seu lado pequeno-burguês?
A contracapa não informa quantos exemplares foram tirados, mas já estamos certamente longe dos 300 exemplares, capa em kraft e edição única feitos pela Averno de Manuel de Freitas. Ora, fora do puritanismo do universo da Averno, e com o trabalho poético reunido numa antologia de 375 páginas que legitima o nome deste poeta no mercado da poesia, que obra nos dá, afinal, Rui Pires Cabral, de apenas 48 anos?
Deambulações, viagens no espaço, na música, nas cidades, nas ruas. Portugal, Inglaterra, capitais e subúrbios, centros comerciais e baldios, cafés e serões na província. Cores desmaiadas e frias, figuras em contraluz. Uma beleza triste como a das mulheres feias às quais se escreve um poema precisamente por serem feias, e não porque se entreveja nelas uma possibilidade de beleza.
No meio de tantos lugares, cujos nomes são quase sempre escritos em inglês, embora isso não acrescente nada ao poema, nenhuma estranheza, nenhum desconforto, porque afinal o olhar do poeta é sempre igual, de cidade para cidade, de casa para casa, de corpo para corpo, e raramente nos maravilha com palavras que permitam ao leitor entrar no poema sem ser pelo mecanismo mais fácil: a identificação.
Ora, quem quer que tenha vivido o Portugal dos anos 90, quem tenha lido e amado a poesia de Al Berto, feito inter-rails, experimentado o cimento, o silêncio e as falsas promessas das cidades face à asfixia das províncias, poderá ler e gostar do trabalho de Rui Pires Cabral. Quem dançou nas discotecas dessa Europa com umas botas Doc Martens nos pés e gravou cassetes com canções do Tom Waits pode certamente encontrar nesta obra um alimento o saudosismo da juventude perdida.
Tal como o mundo dos adolescentes, esta poesia é erigida sobre um Eu que é a instância nuclear de todo o universo, ele está em tudo o que é visto, sentido, vivido. O Tu que surge nos poemas está lá apenas para dar mais visibilidade ao Eu e não tanto como instância de alteridade que abra uma possibilidade de diálogo com o Outro, ou que permita que o poema ressoe o humano.
Por isso, a poesia de Rui Pires Cabral, ainda que tenha momentos poéticos muito bons, é uma toada monocórdica, um universo que nunca é mais do que aquilo que se vê, que não projecta o leitor para níveis de significação maiores, mais profundos. As vivências contadas raramente ganham o carácter de experiências, ou seja, raramente se tornam conhecimento e memória.
O escritor austríaco Hermann Broch escrevia a propósito da poesia de Hugo Von Hofmannsthal algo tão pertinente quanto isto: “enquanto as coisas forem, para ti, apenas algo que está em face do Eu, nunca, mas nunca mesmo, captarás o seu verdadeiro ser, e nenhuma contemplação, nenhuma descrição, por maior que seja a sua intensidade, poderão ajudar-te a compreendê-las”.
Quando captam pequenas harmonias secretas, quando deixam entrever não um real fechado mas um conhecimento feito a partir de experiências não confessadas mas rememoradas, as pequenas narrativas de Pires Cabral podem ser muito boa poesia, e neste sentido o conjunto intitulado Praças e Quintais, de 2003, tem as melhores produções do poeta: aquelas em que o Eu desaparece, ou se transfigura num mundo que não se resume a uma descrição do visível, antes é penetrado pelo invisível, a superfície das coisas descritas deixa intuir profundidades escondidas que não são inteiramente traduzíveis em palavras. Dir-se-ia que, quando o poeta abandona esse espartilho do naturalismo, larga o objecto observado e deixa ficar o espírito que observa, consegue escrever assim:
A Floresta de Cedofeita
Foram estas as ruas que se ergueram
para nós, mal desenhadas, velozes sob o fardo
dos nossos adereços:símbolos de pano,
mortalhas, música ligeira com muitos violinos
e um coro de mulheres. Mas o movimento
rasa apenas a superfície das coisas, é a malha
onde prendemos os olhos, uma espécie de venda.
A floresta que conduzia à igreja está debaixo
do cimento – não a ouves respirar? Tudo o que cresce
sobre a terra tem a mesma vocação, as casas, o passado,
o corpo em todo o caso: qualquer coisa o segura
desde o princípio. E as praças que estiveram
ao fundo da noite uma vez
é para onde caminhamos a vida inteira.
A ilusão de contar a realidade
A Super-realidade é o título de um dos primeiros livros de Pires Cabral, de 1995, e mostra o desejo que o poeta tem de imersão não numa realidade mas numa super-realidade. O problema que o poeta nunca supera é a ilusão de que pode capturar a realidade pelos sentidos e traduzi-la pelas palavras. Ora, a realidade escapa a todos os nossos imperfeitos sentidos, e as palavras, já se sabe, ficam sempre muito aquém daquilo que nomeiam. Por isso tantos poemas redundam em breves histórias vulgares que deixam nada atrás de si.
Claro que, como artista de um certo zeitgeist (espírito do tempo), este poeta consegue pintar bons quadros do seu tempo. Mas, e depois? Depois de tantos poemas, de tanta realidade perguntamo-nos (recorrendo à mesma influência anglo-saxónica que tantos seguidores tem na poesia portuguesa): so what?
Como dizia Gilles Deleuze: “escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, os sonhos e fantasmas (…) a literatura só se afirma se descobre, sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal”. Ou, sendo mais clara: um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do tempo, dos outros, serve para quê?
Escassos dias depois de ter morrido Herberto Helder, porque é que temos a sensação de que a poesia portuguesa ficou vazia, não obstante tantos candidatos a poetas? Provavelmente porque ele era um dos poucos que não reduzia o universo a um punhado de emoções gastas, copiadas ao imaginário construído pelo cinema, pela publicidade, pelos romances, mas que projectava o mundo para lugares novos. Induzia nos leitores a inquietante estranheza não por descrever o terrível quotidiano, mas pela forma como fazia palpitar o verbo, pela forma como superava o tempo e introduzia a sua, a nossa contingência.
Se em Herberto somos sempre tocados por uma sensação de algo que sempre nos escapa, pela incompletude, pela inapreensão; se em Herberto temos vontade de voltar lá e de cada vez que regressamos encontramos sempre algo novo; nestes “poetas sem qualidades” não saímos de uma “coisidade exaltada” feita por uma linguagem coloquial, exígua, uma linguagem reduzida à sua função pragmática. Apesar terem começado a trilhar o seu caminho com as palavras do filosofo alemão Walter Benjamin, os poetas sem qualidades acabam por traí-lo ao usarem precisamente uma linguagem que informa muito mas comunica pouco.
Não sendo o mais dogmático dos poetas da Averno, Rui Pires Cabral mostra nesta Morada que as linhas da arquitectura poética dos “sem qualidades” são também as sua linhas: o quotidiano banal do homem anónimo, a rua como ambiente privilegiado, a beleza da fealdade, o nome dos lugares como índice de realismo do poema, a música pop como principal referência artística, uma aparente rejeição das tradições poéticas portuguesas e um exibicionismo de nomes de autores estrangeiros que não serve de nada à economia do poema mas serve para o poeta reforçar os laços com o real. E serve, certamente, para leitores com atitude adolescente se identificarem e encontrarem nele o conforto das coisas conhecidas.
Ora, ao poeta não basta compreender o zeitgeist, é preciso destruí-lo sob perigo de ficar mumificado nesse tempo. É isso que sentimos na poética de Rui Pires Cabral: que de tanto se fixar nos nomes das coisas do seu tempo, de tanto procurar entre as palavras e as coisas um significado literal, nunca se libertou do tempo, nunca seguiu o conselho do poeta argentino Roberto Juarroz de que a poesia deve “desbaptizar o mundo”, pois só assim toca a essência das coisas. Por isso, a poesia, assim reunida, de Rui Pires Cabral, revela toda uma ilusão de objectividade, de transparência que faz sempre sucesso em tempos de conformismo mas que desilude quem procura na poesia alargar os limites do (seu) mundo.
Rui Pires Cabral é poeta e também tradutor de língua inglesa, nascido em Macedo de Cavaleiros no ano de 1967, traduziu, para a língua portuguesa, alguns livros de Michael Cunningham como Uma Casa no Fim do Mundo, Sangue do Meu Sangue e Dias Exemplares. A sua obra é composta por nove livros que integram esta antologia: Geografia das Estações (1994), A Super-Realidade (1995), Música Antológica & Onze Cidades (1997), Praças e Quintais (2003), Longe da Aldeia (2005), Capitais da Solidão (2006), Oráculos de Cabeceira (2009), Evasão e Remorso (2013) e Mixtape: 13 Avulsos (1996-2014). Todos estes livros integram o tomo que a Assírio & Alvim lançou, em Março, na antologia Morada. De fora ficaram apenas os volumes de poemas-colagem intitulados Biblioteca dos Rapazes (2012), Broken (2013) e Álbum (2013).