Nos anos 50 chegavam-nos da Indochina (hoje Vietname) notícias sangrentas com imagens do General Giáp, de Ho-Chi-Minh, e de Dien-Bien-Phu. As impressionantes fotografias encontrava-as na Paris Match, revista muito popular em Portugal, nesses tempos da derrocada do colonialismo francês no Sudeste Asiático. Foi uma primeira leva de 100.000 mortos pelo lado das forças francesas e 500.000 das forças do Vietname do Norte. No saldo da rendição francesa de Dien Bien Phu em 1954, os Viet-Minh/Vietcong fizeram cerca de 11.000 prisioneiros franceses dos quais, submetidos às piores torturas, sobreviveram apenas cerca de 3.300.

Fantasmas incontornáveis, estes horrores deixaram tão fortes sinais na memória, que me impulsionaram a visitar o Vietname, no ano em que se comemoram os 500 anos da Amizade Portugal Vietname. 2015, ano em que também os Jesuítas portugueses preparam várias comunicações para assinalar um legado de quatro séculos de colossal importância para essas terras do Sudeste Asiático.

Num país vibrante e sem velhos, fui encontrar um povo dócil, amável, pacífico, industrioso, trabalhador, tranquilo, resiliente, e manifestamente querendo esquecer as tragédias inomináveis e os ferozes sofrimentos por que passaram.

Sem que já não se encontre um único esqueleto das guerras, a aguarela do Vietname é impactante. Inebria a suavidade das paisagens do Rio do Perfume, do Delta do Mekong e dos seus pitorescos mercados flutuantes, com brumas matinais parecidas com as que pairam sobre as 2.000 ilhotas da baía de Halong. Encanta o verde berrante dos infindos arrozais, palco real de vidas intrincadas retratadas na riqueza musical e teatral das marionetas aquáticas que se exibem em Hanoi. São intrigantes os buliçosos mercados, como o de Hoi An, com a variedade e cor dos seus produtos. É misteriosa a cidadela de Hue, com 150 anos, mas que parece ter 2.000. Têm uma tonalidade romântica os confortáveis hotéis coloniais onde nos sentimos figurantes de um filme a preto e branco dos anos 30, ao lado de um Humphrey Bogart transfigurado em Somerset Maugham.

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Somando tudo, o Vietname traduz-se hoje em dia numa sinfonia tranquila e afinada.

E para me envolver mais no espírito da coisa, nos intervalos de uma intensa ciranda por cidades e locais que soam a violência, estive a reler The Quiet American, uma das obras-primas de Graham Greene. Desenrola-se no fim da era francesa, e do livro saiu um filme admirável, com a genial interpretação de Michael Caine no papel de Thomas Fowler. E graças a essa almofada, e a outros 4 obras sobre o assunto, consegui perceber melhor a resiliência com que os Vietnamitas estão agora a ressuscitar, a mesma que serviu para lhes excitar as entranhas, e lutar sem trégua contra os invasores e colonizadores estrangeiros.

Num corolário da deplorável incompetência francesa, primeiro como colonizadores, e depois como soldados, sistematicamente derrotados ao longo de décadas, naquela primeira leva concluída em 1954, os Vietnamitas infligiram aos Franceses a humilhação de Dien-Bien-Phu. Foi um epílogo particularmente cruel para a França e para o Ocidente, pelo que significou em termos de fracasso moral, cultural, político, táctico e estratégico, e pela verdadeira barbárie a que depois foram sujeitos os prisioneiros de guerra feitos pelos Vietnamitas do Norte.

Numa segunda leva de nova humilhação para o Ocidente, e já nos anos 70, quais incansáveis formigas rastejando nos campos de arroz e nos mais de 200 quilómetros de túneis cavados em redor de Saigão, os Vietnamitas acabaram por ardilosamente esmagar e, em 1975, fazer render as poderosas tropas dos EUA.

Essa segunda onda de destruição causada pelos ocidentais foi iniciada por John Kennedy em 1961, tendo acabado por se demonstrarem tragicamente gratuitas as 40.000 toneladas de bombas americanas, mais do que todas as por eles lançadas na segunda guerra mundial. No Vietname, com a ajuda adicional do napalm, centenas de milhares de soldados Vietcong, mas muitos mais inocentes Vietnamitas civis, do sul e norte, incluindo velhos, mulheres e crianças, foram liquidados. Dos Americanos, morreram inutilmente 58.000, e dos Vietnamitas cerca de 3.400.000. Foi o apocalíptico saldo da cruzada anti-comunista que se prolongou por 14 anos, e da “Pax Americana” de Kennedy e de Johnson. Todo um negro historial que povoa a imaginação da minha geração, um disparate obsceno.

A tradicional docilidade daquele povo teve na altura um feroz volte face traduzido nas mais horrendas e sádicas crueldades feitas pelos Vietnamitas aos seus prisioneiros franceses e americanos. Estes, com humor negro, apelidavam a prisão de Hanoi, uma das menos punitivas, o Hanoi Hilton; dos prisioneiros franceses, à punição, só 30% sobreviveram. Quem não viu os muitos filmes sobre estas hecatombes, entre os quais se podem recordar Indochine, com Catherine Deneuve, e Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, com Marlon Brando, Martin Sheen e Robert Duval?

E, no fim da guerra com os Americanos, já nem falo das centenas de milhares de irmãos Sul-Vietnamitas, geograficamente situados no território até ali dominado pelo inimigo, que os vitoriosos Vietnamitas do Norte torturaram e mataram cruelmente, ou desapossaram de tudo para os enviar para torcionários campos de concentração, campos de reeducação e doutrinação comunista, ou então que acabaram por conseguir fugir nos famosos boat people, atulhados de gente aterrorizada que, tentando escapar à morte certa, chegava aos países vizinhos na segunda metade dos anos 70, muitos perecendo pelo caminho.

Em 2015, neste Vietname coalhado de milhões de bandeiras comunistas com a foice e o martelo nas suas cores amarela e vermelha vivas, temos uma sociedade cuja economia cresce a um ritmo de 6% ao ano, num ambiente social distendido em que, surpreendentemente, não afloram ressentimentos.

Ainda sem exibir as marcas globais nos supermercados e lojas de rua, pratica-se o progressivo modelo económico de sucesso utilizado na China, numa ditadura do proletariado onde os 90 milhões de Vietnamitas circulam, já não em bicicletas, que desapareceram, mas em 90 milhões de belas scooters japonesas e sul coreanas, a que se adicionam mais uns quantos milhões, com a “segunda scooter” que muitos Vietnamitas possuem. É um “mar” de cabeças andantes, que parecem ir todas em massa para os quatro cantos das cidades, num movimento uniforme, paciente e ordenado. Ao mesmo tempo, os empresários de sucesso e os cleptocratas do partido circulam em sumptuosos Bentleys e Rolls Royces, num tráfico intensíssimo enriquecido por um significativo parque automóvel com uma idade média de apenas 4 anos.

No Vietname de hoje, descobre-se um povo dotado de um quociente de inteligência invulgarmente elevado; nota-se que se mantém o respeito e admiração pelo grande herói nacional, Ho-Chi-Minh, brilhante condottieri e estratega, com corpo mumificado, exposto ao desfile e culto de interminável multidão, tal Lenine no mausoléu da Praça Vermelha, em Moscovo. E gozam-se os mistérios orientais da história, segredados em muitos locais de peregrinação, como por exemplo nos cemitérios das vítimas de guerra; ou então, no polo oposto dessa imagem, em sussurros descobertos em cada recanto do centenário e belíssimo Hotel Metropole de Hanoi, onde se sente a alma de gente que por lá passou nos anos “quentes”, desde Ho-Chi-Minh, a André Malraux, a Graham Greene, e a Marguerite Duras.

No entanto há um aspeto que nos passa totalmente despercebido in loco: a fundamental importância da passagem dos portugueses pelo Vietname, que foi muito para além da habitual cristianização e do comércio.

500 anos depois

Como é sabido os Portugueses foram os primeiros ocidentais a ali chegar e estabelecer-se, em 1516. Localizada a sul de Da Nang, a cidade de Hoi An era conhecida como Faifô, quando, no séc. XVI, ali arribaram os navegadores de Portugal, terra apelidada pelos locais de Bô-Dao-Nha, que significa Casa da Vinha, graças às vides trazidas e ali plantadas com êxito.

Hoje, em Hoi An, só alguns cafés e hostels ostentam o nome de Faifô, sendo a memória dos portugueses subliminar. Por isso fica-se deveras surpreendido quando nos apercebemos do legado português que ali permanece bem visível, mas de que um incauto não se apercebe: a escrita romanizada, introduzida pelos nossos Jesuítas a partir de 1616, e que eliminou para sempre a escrita ideográfica utilizada até hoje em todos os outros países do Sudeste Asiático.

O espesso nevoeiro que paira sobre essa extraordinária herança deve-se em parte à nossa incúria. Mas foi sobretudo resultado da necessidade de uma afirmação cultural que os Franceses não conseguiam consolidar, numa colonização com muita dificuldade em se enraizar. Assim, e desde cedo, estes conseguiram apoderar-se da autoria do trabalho dos Jesuítas/linguistas portugueses Gaspar do Amaral, Francisco de Pina e António Barbosa, que cometeram a proeza de vulgarizar a romanização da língua local com uma nova escrita (Quôc Ngû) que acabou substituindo integralmente o uso dos ideogramas de feição chinesa.

Nessa apropriação do alheio, os Franceses conseguiram consolidar a convicção de que a romanização do vietnamita se deveu a um jesuíta de Avignon, Alexandre de Rhodes. Foram eficazes: no Vietname, e salvo os académicos, poucos sabem quem foi Gaspar do Amaral ou Francisco de Pina, mas todos “sabem” que “foi Rhodes” quem introduziu os caracteres romanos, o que não é verdade.

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As notícias sobre a presença portuguesa, nos séculos XVI, XVII e XVIII no Vietname são confusas, divergentes, e deixam transparecer falta de rigor, suponho que devido às falsidades dos relatos. Graças aos trabalhos em curso a serem desenvolvidos pela Doutora Isabel Augusta Tavares Mourão, do CHAM, (Centro de História de Aquém e d’Além Mar, da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores) que em 2015 dirige as Comemorações dos 500 Anos de Amizade Portugal-Vietname, aguarda-se que, recorrendo também ao esforço dos Jesuítas, dentro de um ou dois anos se possa dar rigor e conferir o seu a seu dono nas publicações académicas e “profanas” sobre a matéria, sobretudo nas que circulam no Vietname. E também com a ajuda dos nossos exportadores de vinho, que bem podem ancorar a dinamização daquele mercado em explosão na expressão Casa da Vinha que, para eles, significa Portugal.

Suprema ironia: depois de os Franceses terem colonizado o Vietname durante 150 anos, e de onde saíram apenas há 60 anos, deixando ali todo tipo de vestígios na arquitetura, nos caminhos-de-ferro, na cultura da borracha, e na presença muito visível da religião católica, já não há uma alma que nesta terra fale francês.

Leituras recomendadas:

Vietnam, a History, por Stanley Karnow;
Dragon Apparent, por Norman Lewis;
Malraux, a Life, por Olivier Todd;
River of Time, por Jon Swain;
Catfish & Mandala, por Andrew Pham;
The Quiet American, por Graham Greene

*Advogado, Empresário

João van Zeller