Fechados na Assembleia, a tentar aprovar uma Constituição num prazo recorde, os deputados tinham pouco tempo para falar com o povo. Mas o povo tinha muito tempo para falar com os deputados. Todos os dias, o parlamento recebia telegramas, cartas, postais e abaixo-assinados enviados de Figueiró dos Vinhos, do Peso da Régua, de Ponte da Barca, de Vila Chã – de todo o lado.
Era a primeira coisa que se fazia no início de cada sessão: um secretário da Mesa da Assembleia (que era também deputado) lia em voz alta a correspondência. Às vezes, esta era a melhor forma de começar o dia. A 20 de Novembro, por exemplo, o correio trouxe um elogio:
“Secretário: Uma carta do Sr. Simões da Costa, de Coimbra, saudando o nosso Presidente, Prof. Henrique de Barros, a quem chama, e muito justamente, ‘íntegro democrata’.
Presidente: Nem toda a gente chama, segundo me parece…
Secretário: Dos energúmenos não rezará a história da revolução…
Vozes: Muito bem!
(Aplausos.)”
Outras demonstrações de apoio eram menos bem recebidas. Quando um habitante de Lisboa enviou “um recado aberto ao Sr. General Carlos Galvão de Melo”, o candidato independente eleito nas listas do CDS, “exortando-o a que resista e insista”, provocou aquilo que ficou registado nas actas como “agitação na Assembleia”.
Não deixa de ser estranho que alguns insultos fossem mais aplaudidos do que este elogio. A 27 de Agosto, a Mesa leu uma carta vinda do Porto:
“Secretário: Passarei a citar: ‘Que fizeram vocês durante o fascismo, deputados do PPD, do CDS e do PS? Passavam a vida refastelados com as vossas amantes nas boîtes e outras casas, a viverem à larga e à francesa…
(Risos.)
(Apupos.)
… agora passam a vida a caluniar o general Vasco Gonçalves, que eu considero o homem mais honesto de Portugal.’
Uma voz: Eh!
Outra voz: Força! Força!”
Várias cartas eram pudicamente censuradas. Sobre a correspondência de um eleitor que vivia na Estrada de Benfica, em Lisboa, disse-se apenas que continha “afirmações bastante descorteses relativamente ao deputado Vital Moreira”. Outra estava cheia de “afirmações desprimorosas a respeito do general Otelo”. A de um eleitor de Viana do Castelo vinha escrita “numa linguagem um pouco imprópria para consumo desta Assembleia”. De qualquer forma, mesmo sendo necessário ingerir alguns sais de fruto, a crítica era aceite, até pelos directamente visados:
“Secretário (António Arnaut): Finalmente, temos um curioso postal que me diz respeito e é dirigido ao Sr. Presidente. Diz assim: ‘Como cidadão eleitor que sou, venho pedir a V. Exa. que se digne chamar a atenção do Secretário Sr. Arnaut para que não faça comentários quando intervém nessa qualidade, devendo até ceder essa missão aos seus colegas.’
(Risos.)
Dou conhecimento deste postal para que se não diga que eu não sei aceitar as piadas, embora esta, de facto, não tenha piada nenhuma.
(Risos.)”
Na Assembleia “a encher a pança”
Como seria de esperar, por vezes o carteiro trazia alguns desafios à lógica e ao bom senso. Por exemplo, uma carta insurgia-se contra o facto de, mesmo depois do 25 de Abril, Portugal continuar a ser “um país de prostitutas, de vendedores ambulantes, de engraxadores, de chulos e ladrões”, o que só poderia levar à “miséria” e ao “atraso”, nunca explicando o seu autor, porém, qual a misteriosa ligação entre “vendedores ambulantes” e “chulos” ou entre “engraxadores” e “ladrões”. Saído directamente de um episódio de The X-Files, um outro eleitor, de Odivelas, enviou um postal a “solicitar protecção” porque dizia estar “a ser perseguido pela nova DGS” (a antiga DGS, sucessora da PIDE no mandato de Marcello Caetano, tinha naturalmente sido extinta a seguir à revolução).
Havia também convites sedutores, como este:
“Secretário: O Solar do Vinho do Porto dá-nos conta da sua existência. Trata-se de uma instituição oficial, pelo que avalio em virtude do timbre da carta, e pede-nos que, quando tivermos tempo, passemos por lá, pois têm uma vasta garrafeira.
Vozes: Olá!
(Risos.)
Vozes: Muito bem!
Secretário: Não teria lido esta carta se não se tratasse de uma instituição oficial.”
Em algumas alturas, surgiam dúvidas pertinentes elaboradas de forma impertinente. Um eleitor de Faro escreveu: “Segundo li em determinado órgão de informação, os deputados encontram-se na Assembleia Constituinte apenas para encher a pança. (…) Permito-me solicitar a V. Exa., Sr. Presidente, como partícula deste povo, me seja dado saber, não directa e pessoalmente, mas através dos trabalhos da Assembleia Constituinte, quais as retribuições atribuídas aos Srs. Deputados.”
Muitos não estavam preocupados com o dinheiro dos deputados, mas com o seu próprio. Para vários eleitores, o parlamento era a última hipótese de resolverem os seus dramáticos problemas pessoais. Um dos telegramas era revelador: “Agricultor casado dois filhos reduzidos miséria expoliação total gados seara máquinas terras vem expor VV. Exas. sua situação dramática pedir justiça.”
Outro eleitor enviou “uma exposição” onde descrevia “a sua atribulada e difícil vida de homem pobre, para se referir igualmente a um assalto injustificado a uma sua propriedade”. No final, pedia “providências” e fazia “um apelo aos deputados” para que “abordassem este problema”. Uma mulher escreveu em desespero, sem saber que a sua carta não serviria de nada: “Ajoelhando-me aos pés de VV. Exas. suplico aos vossos corações bondosos não permitirem que sejam atirados para rua três netinhos por mandato despejo minha filha ainda Angola genro retornado doente. Muito obrigado.”
Sempre que possível, os deputados atiravam problemas como estes para a porta do lado. Quando receberam a carta de um eleitor a explicar as suas “dificuldades” para “educar uma filha”, uma vez que “o seu salário não lhe permite custear todas as despesas resultantes desses estudos”, o secretário da Mesa comentou: “É um assunto que escapa à nossa competência, mas sugerimos ao nosso correspondente que se dirija ao Ministério da Educação e Cultura, que certamente remediará a difícil situação do nosso correspondente.” Certamente?
Outras vezes, isto era feito com um desnecessário toque de superioridade intelectual. Uma eleitora de Pombal explicou que não tinha casa nem emprego e estava com um filho doente – por isso, “apelava à caridade do Estado”. A resposta foi esta: “Numa sociedade socialista, informo a nossa correspondente, não há lugar à caridade, há sim justiça. Sugerimos à nossa correspondente que exponha o seu caso, que merece a máxima consideração, ao Sr. primeiro-ministro, porque certamente ele será resolvido. Nós, infelizmente, não podemos resolvê-lo.”
Os deputados também escrevem
Nem todos os telegramas, cartas e postais eram inocentes. Percebendo que existia ali mais uma possibilidade de fazer política, os partidos começaram a mobilizar-se. Em alguns dias, havia dezenas de comunicações enviadas por núcleos de trabalhadores, por juventudes partidárias ou por organizações concelhias. A 15 de Outubro de 1975, por exemplo, chegou este telegrama: “Núcleo trabalhadores PPD Philips Lisboa repudia falsa informação órgãos comunicação social sectários tendente criação clima propício subversão criminosa desordeiros ocupam RASP e dispararam contra manifestantes pacíficos stop Povo trabalhador não consentirá Portugal se afunde stop Queremos ordem democrática.”
Aliás, os telegramas tornaram-se tão populares que os próprios deputados os usavam. Umas vezes, eram uma simples forma de comunicação:
“Secretário: O Sr. Presidente da Assembleia Constituinte, o Sr. Henrique de Barros, enviou o seguinte telegrama: ‘Conselho médico provável ausência parte ou mesmo toda semana agradecendo promova substituições julgo estarem solucionados principais problemas pendentes. Henrique Barros.’”
Outras vezes, eram uma forma de protesto. A 17 de Outubro de 1975, um deputado que estava há duas semanas a aguardar a sua vez para discursar, fartou-se e mandou um telegrama. O texto foi lido logo no dia seguinte, como era regra, e, assim, já não precisou de esperar mais para dizer o que queria:
“Secretário: Finalmente, um extenso e curioso telegrama do nosso colega e meu camarada Manuel Ramos, do seguinte teor: ‘Inscrito há duas semanas antes ordem do dia não chegou minha vez devido avultado número deputados para usar palavra stop Como telegramas são sempre lidos expediente recorro este meio alertar novamente Assembleia escassos dias temos para completar Constituição precisamente vinte e seis stop Há que trabalhar mais e se possível melhor stop Peço V. Exa. imponha respeito total Regimento para ganharmos tempo stop Respeitosos cumprimentos V. Exa. saudações socialistas toda a Câmara. Manuel Ramos, Deputado’.”
Perante esta originalidade, o Presidente da Assembleia optou pelo elogio e pela graça: “O processo, como vêem, foi eficaz, embora talvez dispendioso para o seu autor”.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes