De repente, já não havia como escapar. Todas as portas do Palácio de São Bento estavam fechadas. Lá dentro, algumas centenas de deputados, funcionários e membros do governo. Lá fora, vários milhares de trabalhadores da construção civil. Os sentimentos dos primeiros variavam entre o medo, a apreensão e a raiva. Os sentimentos dos segundos não variavam – todos estavam furiosos.
Frustrados com o impasse na negociação do novo contrato colectivo vertical para o sector (sim, naquele tempo estas coisas eram mesmo importantes), os operários organizaram uma manifestação para o dia 12 de Novembro de 1975. O destino final da multidão, que se juntara no Terreiro do Paço, deveria ser o Ministério do Trabalho. O problema é que, com medo de que houvesse uma invasão do edifício, o ministro mandara encerrar as portas e as janelas. Esta medida conseguiu ser ao mesmo tempo prudente e insensata. Prudente, porque evitou um cerco ao ministério. Insensata, porque deixou os manifestantes sem um alvo evidente. Ao faltar-lhes um ministro a quem pudessem gritar, os operários decidiram subir mais um passo na hierarquia do Estado e foram directos à residência oficial do primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo.
Não era preciso trabalhar nos Correios para saber onde isso ficava – ficava em São Bento. Mas, ao cercarem o chefe do Governo, os trabalhadores da construção civil também cercaram os seus vizinhos do lado. A partir do final da tarde, os deputados à Assembleia Constituinte tornaram-se oficialmente vítimas de um sequestro político. Passariam toda a noite e madrugada dentro do edifício, só conseguindo sair no dia seguinte, ainda com o cerco a decorrer.
A primeira coisa a acabar foi a comida: o bar da Assembleia não tinha mantimentos suficientes para todos. A segunda coisa a acabar foi a resistência física: a partir de dada altura, vários deputados encostaram a cabeça aos tampos das suas secretárias ou deitaram-se nos sofás dos Passos Perdidos. Um jornalista do Diário de Notícias (que na altura tinha como director adjunto o comunista e muito revolucionário José Saramago), descreveu um ambiente de “roncos e suspiros”. O seu gozo por estar a assistir a uma humilhação da burguesia era indisfarçável: “Extremamente curiosa a pose de um deputado doutor, precocemente regressado aos seus hábitos de infância. Resplandecente de candura, chuchava no indicador ‘reaccionário’.” Colocados numa situação de onde não podiam sair, todos os deputados prefeririam estar noutro lado qualquer.
Quer dizer: todos, não. Na realidade, vários deputados gostaram de ser sequestrados, mesmo que alguns se sentissem obrigados a dizer que discordavam daquele método de luta. Para a UDP, para o PCP e para o MDP/CDE, a manifestação era mais uma prova do poder das massas. Um outro jornalista do Diário de Notícias, que com desarmante honestidade se descreveu a si próprio como “o repórter também ‘sequestrado’ (felizmente ‘sequestrado’)”, escreveu um texto a explicar as suas emoções profundas, que seriam seguramente partilhadas pelas bancadas da extrema-esquerda:
“Fora do palácio, cercado pelo povo trabalhador, revolucionariamente irrequieto, sentíamos a exaltação da revolução, na sua verdade mais lídima, mais telúrica, mais saudável, de que milhares e milhares de fatos-macacos e capacetes eram um incomparável e comovente testemunho, de que milhares e milhares de punhos fechados e de vozes rudes e roucas eram como que um maravilhoso baluarte”.
“Hoje não batem os dentes!?”
Américo Duarte não podia estar mais de acordo. Logo que percebeu o que se estava a passar, o deputado da UDP foi para o átrio do edifício “dialogar com manifestantes e soldados”. Quando, dias mais tarde, foi confrontado no plenário com a sua atitude, respondeu: “É junto à minha classe que me pertence estar e não junto a estes fascistas”. Perante a “agitação” de vários deputados, atirou mais uma provocação:
“Ainda há pouco batiam palmas, eu na quarta-feira passada vi-os foi bater os dentes, e não sei se era de frio… nem se não…
(Manifestações de protesto.)
Vocês hoje não batem os dentes como faz hoje oito dias!?”
Na realidade, a posição de Américo Duarte não surpreendia ninguém. Mas sobressaltava algumas pessoas. No dia do cerco, Carlos Marques, um dos assessores do deputado, chegou atrasado à Assembleia e só entrou no edifício quando já havia barricadas. Foi imediatamente interrogado por vários jornalistas: “É verdade que a UDP está a preparar a tomada do poder?”.
Era uma pergunta absurda: a UDP não conseguiria tomar o poder mesmo que ele lhe fosse oferecido numa bandeja de prata e acompanhado pelo livro de instruções. Mas outros conseguiriam. O PCP, por exemplo, incentivou os operários da construção civil. Na noite do cerco, o deputado Octávio Pato falou de forma clara sobre a situação dos parlamentares: “A nossa estadia aqui faz parte do processo revolucionário português”. Dias mais tarde, num discurso feito em plenário, manteve-se firme (e nostálgico):
“É inesquecível o espírito de sacrifício de milhares de trabalhadores que, durante trinta e seis horas, sem dormir…
(Agitação na sala.)
… ao frio da noite, sentados ou deitados nas ruas ou nas escadarias junto ao Palácio de São Bento, ali se mantiveram e dali não arredaram pé.
(Burburinho.)
(Apupos.)
(Manifestações das galerias.)
(Troca de palavras entre o hemiciclo e as galerias.)”
Apanhados a comer
Ao longo da sua intervenção, Octávio Pato foi confrontado com o maior erro que os deputados comunistas cometeram durante o sequestro. Naquela noite, o PCP foi o único partido a conseguir receber comida do exterior. Pior do que ter feito isso era ter sido apanhado: os comunistas foram surpreendidos por outros deputados quando estavam fechados numa sala com uma mesa cheia de sanduíches. Ninguém os perdoava:
“Uma voz: Eles a comer cá dentro e os trabalhadores cheios de fome lá fora.
Octávio Pato: Oh! Coitadinhos! Coitadinhos! Se você quiser, eu digo-lhe quem é que foi lá fora comer do PS e do PPD.
(Agitação na sala.)
De qualquer forma, o PCP não estava sozinho. Luís Catarino, do MDP/CDE, também conseguia ver virtudes na atitude dos manifestantes. De forma algo rebuscada, descobriu um argumento para defender o cerco: “Se houver uma perspectiva coincidente entre um deputado retido no Palácio de São Bento e os trabalhadores que lá fora se manifestam, naturalmente que ele entende e aceita perfeitamente esta pequena contingência a que foi submetido”. Mesmo Alfredo Carvalho, do PS, dizia “não estar revoltado” por ter ficado “retido”.
Alguns deputados gostaram tanto da experiência que não se importaram de ficar por ali mesmo depois de serem libertados. No caso de Hermenegilda Pereira, do PCP, acrescia à ideologia uma razão prática. Um jornalista perguntou-lhe o que é que estava ainda a fazer nas escadarias do edifício e a deputada-operária respondeu: “Estou a ver se entre a malta descubro alguém conhecido do Barreiro que me dê uma boleia para casa, pois a esta hora já perdi o barco”.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“Diário de Notícias” de 14 e 15 de Novembro de 1975
“Grande Reportagem” de 2 de Abril de 2005
“Jornal de Notícias” de 13 e 14 de Novembro de 1975