Não vá a pressa tecê-las, é sempre melhor ir para lá com umas valentes horas de avanço. Por melhor que seja a logística, são muitas as coisas por tratar: as tendas que se têm de montar para haver sombra, as brasas que se têm de acordar para, depois, afagarem a sardinha ou a bifana, e a cerveja que se tem de gelar para entrar fresquinha nas gargantas. É isto, e muito mais, que milhares de pessoas se lembram de fazer, todos os anos, ali num descampado do Centro Desportivo Nacional do Jamor. A farra é tanta que, mais do que uma final, já é tradição dizer que a decisão da Taça de Portugal é uma festa. Sejam qual forem os clubes que lá cheguem.

A Taça existe há 76 anos, mas não foram 76 as vezes que esta festarola se montou ao lado do Estádio Nacional. A final da Taça chegou ao Jamor na época de 45/46 e a partir daí houve cinco finais da competição que se jogaram noutros recintos. E até houve casos em que a partida se realizou em casa de um dos finalistas. Nessas edições, portanto, voltou-se as costas à tradição e à tal mística que o Jamor dá à Taça de Portugal, certo? Não senhor, pelo menos se for Octávio Machado a responder à pergunta. “Se o Estádio do Jamor fosse assim tão emblemático, então era aí onde a seleção jogava sempre”, diz quem jogou uma das finais que fugiram do Estádio Nacional.

Octávio esteve na decisão que, em 1977, se jogou no Estádio das Antas. As outras aconteceram em 1961, 1975, 1976 e 1983. Tentámos tirar o pó à história e saber como, e porquê, essas cinco finais deixaram o Jamor de mãos a abanar. Pedimos uma ajudinha a alguns jogadores que por lá estiveram, mas, às vezes, nem a memória parecia querer saber disto.

1961: Estádio das Antas
Leixões 2-0 FC Porto

https://www.youtube.com/watch?v=4J94JK_Oz2g

Os dois finalistas eram nortenhos e ambos teriam que se enfiar num autocarro para percorrerem mais de 300 quilómetros até chegarem ao Jamor. Por isso o FC Porto teve uma ideia — pedir que a final se realizasse no Estádio das Antas. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) disse que sim e os dragões acharam, talvez, que tudo estava pronto para fazerem a festa em casa.

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Mas não a fizeram porque o Leixões não deixou. A equipa de Matosinhos ganhou por 2-0 e tornou-se, na altura, no terceiro clube além dos grandes a conquistar a Taça de Portugal (antes, já a Académica e o Belenenses tinham conseguido).

1975: Estádio José de Alvalade
Boavista ganhou 2-1 ao Benfica

https://youtu.be/naf4hvO6_2w?list=PLuskYcYhOpd5mFUMUqVY_xQMj6yapKXkz

Viviam-se tempos diferentes. Era a primeira época que o futebol cumpria sem a companhia do Estado Novo. Toni lembra-se “perfeitamente do jogo” e não se esquece que foi de João Alves o golo que deu ao Boavista a vitória (2-1) frente ao Benfica. Mas não se recorda das razões que mudaram a final da Taça de Portugal para o Estádio José de Alvalade, casa do Sporting. “Tem graça, não sei. Até tenho um pouco memória de elefante, mas não me lembro mesmo”, admite, entre as éne pausas que faz durante a chamada em que o Observador lhe atira a dúvida para dentro da cabeça.

Toni puxa e puxa pela memória, em vão. Não encontra as razões que mudaram o estádio da final. “O Benfica até era uma equipa de Lisboa e o Boavista do Porto, por isso foi estranho. Epá, e sinceramente nem se tratava de estarmos no campo do rival de sempre. Aquilo simplesmente não tinha nada a ver com a envolvência do Estádio Nacional, que tem e terá sempre algo de mítico em relação à Taça de Portugal”, explica quem, na altura, ia na sétima de 13 temporadas a jogar no Benfica.

Sem conseguir chegar aos porquês, o hoje treinador opta pelas suspeitas. “A revolução [de 1974] ainda estava fresca e viviam-se aqueles tempos de liberdade. O Estádio Nacional foi construído durante o Estado Novo e talvez não se quisesse a primeira final depois do 25 de abril no Jamor”, diz, lembrando-se, isso sim, de que o ambiente que se viu em Alvalade “não tinha nada a ver com a envolvência do Estádio Nacional”. Para Toni, Taça de Portugal é sinónimo de Jamor e ponto final.

1976: Estádio das Antas
Boavista 2-1 Vitória de Guimarães

E sai mais uma final para o Boavista. Os axadrezados voltaram a ganhar a tudo e todos e, pelo segundo ano consecutivo, chegaram à decisão da Taça de Portugal. Não foi festa que foram espreitar ao Jamor, pois a FPF decidiu, outra vez, marcar a final para outro estádio. Desta vez até deu jeito, já que o outro finalista era o Vitória de Guimarães e, como tal, o Estádio das Antas ficava bem mais perto para os dois clubes. Dois golos do brasileiro Salvador bastaram para o Boavista levar para casa outro caneco.

1977: Estádio das Antas
FC Porto 1-0 Sporting de Braga

Foto: Arquivo JN/Global Imagens

Foto: Arquivo JN/Global Imagens

Dezasseis anos depois e o FC Porto conseguiu jogar outra final em casa. O Estádio das Antas voltou a encher e, desta vez, tudo correu como os dragões queriam: um golo de Fernando Gomes fez o truque. Foi a terceira época seguida que a Taça de Portugal não visitou o Estádio Nacional e o Jamor já devia estar a ficar com teias de aranha. Octávio Machado, um dos dragões que jogou na altura, não via nenhum mal nisto: “O Estádio Nacional era inseguro e obrigava a que alguns fizessem centenas de quilómetros enquanto outros esperavam sentados.

O antigo médio e atual treinador acrescenta que, na altura, “o futebol português tinha criado a imagem de que havia uma proteção às equipas de Lisboa”. À época, prossegue, vivia-se uma fase de “transformações e de reações aos regulamentos” e “aqueles que se julgaram excluídos tudo fizeram para responderem ao que consideravam ser injustiças”. O Estádio Nacional ainda não se soltara da etiqueta colada pelo Estado Novo e isso, aliado à “lógica de proximidade” — o Sporting de Braga foi o outro finalista — fez com que a decisão se realizasse nas Antas.

1983: Estádio das Antas
FC Porto 0-1 Benfica

Houve comunicados, assembleias-gerais, bate pés, recusas, ameaças e ultimatos. A confusão que, em 1982/1983, rodeou a Taça de Portugal foi tanta que a final apenas se jogou a 21 de agosto. Isso mesmo, já bem dentro do calendário da temporada seguinte. Tudo foi provocado por uma decisão que Romão Martins, presidente da FPF, tomou ainda no início da época — seria a Associação de Futebol do Porto a organizar a decisão da Taça.

Na altura não se ouviram críticas porque ninguém fazia ideia de quem ia chegar à final. O problema apareceu em maio, quando se confirmou que a taça seria decidida entre o FC Porto e o Benfica. Aí o caldo entornou-se, e por várias razões. Primeiro, a federação já estava com outro presidente a mandar, Silva Resende, que pretendia ver a final a jogar-se no sítio do costume, no Jamor. Depois, porque Jorge Nuno Pinto da Costa, então acabadinho de chegar à presidência do FC Porto (abril de 1982), bate o pé e recusa-se a não jogar a final nas Antas. E terceiro, o Benfica, cujos planos também não passavam por jogar a final da Taça em casa dos dragões.

TACA83001 GNJNTACA1983001s TAÇA DE PORTUGAL, 1983, final entre FC Porto e o Benfica, Estádio das Antas, Equipas alinhadas antes do jogo.   © Proibido o uso editorial sem autorização da Global Notícias.  Esta fotografia não pode ser reproduzida por qualquer forma ou quaisquer meios electrónicos, mecânicos ou outros, incluindo fotocópia, gravação magnética ou qualquer processo de armazenamento  ou sistema de recuperação de informação, sem prévia autorização escrita da Global Notícias.

Foto: Arquivo DN/Global Imagens

A polémica durou e durou. Houve uma assembleia-geral do FC Porto, de pavilhão cheio; apareceu a hipótese de a final se jogar em Coimbra; o Benfica vai dizendo que não a tudo que não seja jogar a final no Jamor; e a FPF reúne o Conselho de Justiça a 1 de julho e decide adiar o jogo por tempo indefinido. Às tantas, Pinto da Costa chega a dizer: “Vamos a ver se a FPF tem a coragem de nos mandar para a segunda divisão, pois é esse o desejo que os move, pois Lisboa quer continuar a colonizar o resto do país.” E a final fica em águas de bacalhau. Álvaro Magalhães lembra-se bem disso. “Marcaram o jogo para o Porto, o Benfica contestou e, quando marcaram a final para agosto, o clube até pensou não levar os titulares ao jogo”, diz o antigo médio encarnado.

Mas Sven-Göran Eriksson não achou piada à ideia. “Disse: ‘Não senhora. Em qualquer parte do mundo temos de jogar com os melhores.’ E apresentámo-nos com a melhor equipa”, contra quem, depois, jogaria mesmo a final da taça a 21 de agosto, já no início da época seguinte, quando o Benfica lá consentiu que o jogo se realizasse no Estádio das Antas. O golo de Carlos Manuel e a vitória (1-0) encarnada foram históricos, mas, aos olhos de Álvaro, não tanto como as 75 finais que o Jamor já acolheu: “Não é a mesma coisa. No Estádio Nacional o público faz com que seja um jogo de festa. Nesse dia há um espírito de amizade, mesmo que todos queiram ganhar.”