André Azoulay faz questão de dizer que é marroquino, judeu, berbere e árabe. É a defesa destes valores, nomeadamente como conselheiro do rei Hassan II e agora do rei Mohammed VI de Marrocos, assim como da promoção do diálogo entre muçulmanos e judeus, que lhe valeu ser distinguido com o prémio Norte-Sul em 2014, atribuído pelo Conselho da Europa e pelo Centro Norte-Sul, entregue em Portugal. Para Azoulay, a diversidade “é um privilégio, não um problema”.

Nascido em Marrocos, mas com uma parte da vida passada em Paris, o conselheiro do rei de Marrocos trabalhou durante muitos anos na banca, ao mesmo tempo que foi desenvolvendo, em várias organizações, a promoção da imagem dos judeus sefarditas, assim como a herança partilhada entre árabes e judeus. A promoção do diálogo entre povos continuou a ser uma constante na sua vida, sendo atualmente presidente do Grupo de Sábios para a Aliança das Civilizações da ONU, presidente da Fundação das Três Culturas do Mediterrâneo, entre outras organizações. Leia a entrevista.

Está em Portugal para receber um prémio que dá grande ênfase à importância do diálogo, especialmente ao diálogo intercultural. Perante as ameaças atuais na região do Mediterrâneo, considera que este diálogo ganhou uma nova importância?

Não só importância, o diálogo é central e mais necessário do que nunca e é por isso que me sinto tão honrado por esta distinção. Mas vejo-a também como uma responsabilidade e um desafio, o de continuar a partilhar com o máximo de pessoas a minha experiência e mostrar que o diálogo é possível, mesmo no meio de uma situação tão regressiva, arcaica, e até, tal como testemunhámos na última sexta-feira, trágica. Nesta altura, receber este prémio não é apenas mais um prémio, é uma oportunidade para resistir e para mim, particularmente, um incentivo para continuar. Eu sou marroquino, sou judeu, sou berbere e sou árabe e existo no Islão. Esta diversidade é um privilégio, não é um problema.

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Com a sua herança cultural e na sua experiência, o que é essencial para conseguir estabelecer diálogo entre mundos que aparentemente são tão diferentes?

O que é urgente é dar o testemunho e dizer ao maior número de pessoas que a vida não é branco e preto. Infelizmente vivemos num período tão retrógrado, em todo o lado, mas especialmente no Mediterrâneo, que não podemos ser passivos. Temos de lutar e resistir e, no meu caso específico, porque tenho o privilégio de partilhar estes legados tão diferentes, não posso manter esta experiência só para mim. É impossível não dizer que o meu país, que em 2011 votou uma Constituição em que reconhece a sua herança cultural, não me deixa orgulhoso. Não conheço outro país no mundo que se refira a toda esta História, mas existe. Existe no Islão, um país que refere a sua herança cultural judaica. Se fosse ao contrário e Marrocos tivesse dito que negava tudo isto, estaria nas primeiras páginas dos jornais, mas como aceitámos, não se falou no Mundo Ocidental. O desafio é mesmo a ignorância. Nós não estamos a falar num choque de civilizações ou num choque de religiões, é mesmo o choque da ignorância. A mim parece-me que a Europa ainda está muito agarrada a essas teorias de choque, embora me pareça que o cidadão comum está cada vez mais longe dessas ideias. O confronto existe, mas é preciso explicar às nossas sociedades a complexidade das situações.

Sendo assim, do seu ponto de vista, considera que atos terroristas como os que são cometidos pelo autoproclamado Estado Islâmico recebem demasiada atenção mediática, não havendo equilíbrio com o que pensam e fazem os muçulmanos moderados?

Infelizmente, os analistas não têm qualquer apetite para a complexidade dos problemas. Posso contar-lhe tantas histórias importantes da região de onde sou oriundo, mas que não tiveram qualquer atenção. No meu entender, é preciso explicar que as questões são complexas, mas é preciso lidar com elas. Todos nós temos de resistir a esta tendência para o confronto ou para a negação.

Considera que a instabilidade na região do Magrebe tem afetado Marrocos? Como?

Se os marroquinos pudessem estar aqui e falar consigo, iam dizer-lhe o que eu estou a dizer. O sentimento para com aqueles que estão a instrumentalizar uma religião ou uma civilização é hostil. Também posso falar em nome da comunidade judaica e o sentimento é o mesmo. Sempre que há radicalismos, eu sinto-me ofendido. Eu não aceito isso. A maioria das pessoas no mundo islâmico não faz parte do Estado Islâmico e temos, novamente, de lidar com esta complexidade e não aceitar uma caricatura.

Os extremismos na Europa estão a crescer, muitas vezes alimentados pela crise e pelo desemprego. No Magrebe também há muito descontentamento ligado a estas razões. Está preocupado com as gerações mais jovens e a sua capacidade de estabelecer diálogo?

Acho que os maiores desafios não são nem sociais, nem económicos. O desafio é dar às pessoas o respeito e a dignidade que elas merecem. A mesma liberdade, a mesma diversidade, os mesmos direitos humanos. A dignidade vai para além da sociedade e das necessidades económicas. É claro que se conseguirmos distribuir mais riqueza, criar mais trabalho, isso vai ajudar, mas a minha crença é que mesmo que tenhamos conseguido dar a melhor resposta aos desafios económicos e sociais, sem haver dignidade, não há qualquer avanço. Claro que é mais confortável para muitos observadores ocidentais dizer: “É um problema económico”. Mas é mais do que isso.

Mas então como é que se atinge esse patamar de dignidade?

Primeiro tem de haver respeito. Tem de se dar a oportunidade às pessoas de terem justiça e liberdade e manterem as suas próprias culturas, valores e identidades. E dar-lhes a oportunidade de expressarem a sua individualidade sem serem obrigados a ser clones uns dos outros. Cada pessoa tem a sua narrativa. A identidade não é uma patologia e nós aqui no Mediterrâneo partilhamos uma herança.

Mas considera que esse patamar de dignidade existe em Marrocos neste momento?

Tem de haver essa garantia, mas isto não se atinge através de um decreto. Tem a ver com a cultura, com uma nação. E esse é um desafio. Nós não somos novatos, temos uma história.

É algo que tem de ser construído?

É algo que tem de ser cultivado. Tem de ser ensinado. A pedagogia tem de ser feita.

E consegue vê-la na atuação política em Marrocos?

Essa pedagogia nunca é suficiente. Mas se Marrocos está hoje na situação em que está – e que me deixa bastante orgulhoso -, não é por acidente. Foi algo forjado por séculos de história e porque as decisões tomadas nas últimas décadas foram as corretas. Temos uma liderança forte com o Rei Mohammed VI, que é um defensor do que eu tenho estado a tentar explicar obre a importância de um país que reconhece o seu passado.

Na atualidade, no espaço partilhado do Mediterrâneo, estamos confrontados com problemas relacionados com as migrações e milhares de pessoas que tentam chegar à Europa. No último Conselho Europeu não houve uma posição comum concreta sobre isto, como é que é este impasse pode ser resolvido a tempo de ajudar quem tenta aqui chegar?

Elas não estão a chegar por acidente, ninguém fica feliz por sair do seu país e ser confrontado com todos os perigos para chegar à Europa. Temos uma situação objetiva pela qual nos temos de responsabilizar, todos nós. Sabemos que é importante para a união europeia manter a EUROMED ou União para o Mediterrâneo e eu não estou confortável pelo facto de esta parceria, que é bem-sucedida em aspetos como o livre comércio e em termos financeiros, não podemos desenvolver e temos estes fluxos de capitais e ao mesmo tempo ser tão passivos em relação a estes desafios. Todos estamos a perder.

E como é que Marrocos encara estes migrantes?

Estamos a fazer o que conseguimos. Nós somos africanos e o problema não é o mesmo que aqui na Europa. Não vemos a mesma situação como os países europeus.

Mas mesmo na Europa, as posições não são as mesmas…

Claro, concordo que as posições dos Estados-membros são diferentes, mas a resposta para este problema tem de ser global. Falava há pouco de uma resposta que estava a ser preparada em Bruxelas e não vejo uma decisão definitiva, para já. Mas vai surgir, tem de surgir.