É o sonho de qualquer neto imberbe: sentar-se ao colo do avô, os olhos a brilharem de curiosidade, e abrir os ouvidos para deixar entrar conhecimento. Quando se é muito miudito não se sabe, nem se percebe, mas um avô já leva tantos anos vividos que é capaz de rebobinar a memória e dar corda às palavras. Quem vive muito também tem muito para contar e, mesmo que ainda só tenha 20 anos contados, Bernardo Silva sabia que daqui ia sair algo para “contar aos filhos e aos netos”. Talvez já se imaginasse bem velhote, de cabelos grisalhos, uma bengala em vez da canhota que hoje usa para domar a bola, a falar ao neto daquela vez em que foi à República Checa para jogar a final de um Europeu.

Lá estaria o vôvô Bernardo, sentado na poltrona preferida, cobertor sobre as pernas, com o neto a chateá-lo para ouvir a história. A conversa podia não fugir muito do que aqui se vai escrever. O médio quase se terá imaginado assim logo no arranque, aos 7’, quando Sérgio Oliveira, o capitão, bateu com o pé direito um livre à barra da baliza sueca. A história poderia começar assim, com um “olha, neto, não marcámos logo a abrir por acaso”, seguido de uma explicação de como, minuto atrás de minuto, a bola foi falando português. Em parte, porque quem era escandinavo parecia não estar interessado em ensiná-la a falar sueco.

Os que vestiam de amarelo eram cautelosos, já poderia dizer o avô Bernardo. Defendiam com os 11 homens que tinham em campo e colocavam-nos todos atrás da linha da bola, fechadinhos à volta da sua grande área. Não se afastavam entre si nem abriam espaços para o pé esquerdo do número 10 português espreitar nas costas de adversários para receber bolas. Nem tocou assim tão pouco na bola, mas sempre que o fazia estava longe, bem longe da baliza. A Suécia nunca se desencolheu e apenas se esticava um pouco em contra-ataques, nos poucos que, até ao intervalo, só conseguiram cruzar um par de bolas para as mãos de José Sá. “Era o nosso guarda-redes, tinha uma barba grande e até ali tinha defendido tudo”, poderá um dia dizer o avôzinho Bernardo.

A história da final chegaria ao intervalo e aí haveria tempo para dizer como Portugal bem se portara até ali. Como antes, na meia-final, atropelara o bicho-papão da Alemanha, por 5-0, com o avô a marcar e dar golos aos outros. Como os elogios choveram sobre a seleção e alguns jogadores — William Carvalho, Paulo Oliveira ou Sérgio Oliveira. Como o avô Bernardo, então com 20 anos, insistia em dar nas vistas, em fintar e inventar passes, e em ser eleito, por duas vezes, o melhor jogador em campo durante o Europeu. Ou de como Portugal, em cinco jogos, conseguiu a obra de sofrer apenas um golo. Depois a conversa voltaria à final.

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(R) of Sweden and of Portugal battle for the ball during the UEFA European Under-21 final match between Sweden and Portugal at Eden Stadium on June 30, 2015 in Prague, Czech Republic.

Aí o velhote contaria ao miúdo como os suecos cresceram, se tornaram atrevidos e passaram a querer atacar devagar em vez de rápido. Passaram a querer tanto a bola como os portugueses e o jogo acalmou. Portugal só conseguia assustar Carlgren, o guarda-redes nórdico, com remates disparados de longe, como o de Sérgio Oliveira, aos 54’, e os vários que Tozé, depois, tentou. Antes já um loiro avançado sueco, com apelido italiano, inventara um remate acrobático que pregou um valente susto aos portugueses. Chamava-se John Guidetti e foi o mesmo que, aos 86’, uma carambola na área deixou sozinho à frente de José Sá. Valeu, na altura, a mão esticada do guardião. “Lembras-te quando disse que defendia tudo?”, perguntava o avô Bernardo. Era bem verdade.

Antes, já Rui Jorge arriscara cedo e substituiu jogadores antes dos 70’. Quis ver as coisas a mudar e pouca coisa nova houve além de um remate de Iuri Medeiros que rasou o poste. Ninguém mexeu no zero a zero e a história, por isso, demora a ser contada. O prolongamento trouxe uma seleção portuguesa cansada, a querer ter a bola durante mais tempo. Os jogadores já se desmarcavam pouco, esperavam pela bola ao invés de procurá-la, e os suecos aproveitaram. Um de nome estranho, Khalili, remata em arco aos 95’ e não marca por acaso. A Suécia parecia estar mais fresca ou, se não estava, pelo menos tinha mais físico para ganhar ressaltos e segundas bolas aos portugueses. O avô Bernardo, pequenote, bem se lembraria disto.

O prolongamento passou e nada. Duas horas de bola a rolar não chegaram e, por isso, haveria penáltis. Nervos, emoções, ansiedade, suspense, tudo à mistura. Uma final destes Europeus não se decidia assim desde 2002, quando um grandalhão checo, Petr Cech — “o que trocou o Chelsea pelo Arsenal, sabes quem era, neto?” –, protegeu a baliza da República Checa para lhes dar a vitória. Esta era a vez de Portugal, ou não, porque desde o início se percebeu que os suecos, das duas uma: ou estavam mais confiantes que os portugueses, ou gastaram mais horas a treinar os penáltis.

Houve cinco homens vestidos de amarelo a rematarem na bola e só um não o fez com força, pelo ar e a apontar à rede superior da baliza — esse, o tal Khalili, bateu rasteiro e José Sá defendeu. Pelo meio o avô Bernardo, que não se aproximou da marca de penálti, viu um Ricardo Esgaio de cara desconfiada a falhar. Depois ainda assistiria a William Carvalho, o que tantos elogios colhera, quase passar a bola ao guarda-redes sueco e provar que, de facto, aquela cara que tinha era a de quem parecia ter pouca confiança de que iria marcar. “São assim os penáltis, neto”, diria Bernardo, encolhendo os ombros e talvez vertendo as mesmas lágrimas que chorou ao ver os suecos pularem de alegria. A Suécia conquistava o Europeu e, 21 anos depois, Portugal voltava a perder uma final.

PRAGUE, CZECH REPUBLIC - JUNE 30: The team of Sweden celebrates after winning the UEFA European Under-21 final match between Sweden and Portugal at Eden Stadium on June 30, 2015 in Prague, Czech Republic.  (Photo by Martin Rose/Getty Images)

Bernardo Silva, antes da final, dizia que tencionava fazer uma história “para contar aos filhos e aos netos”. Com ela já perdida, disse que “não [se] importava de não jogar nenhum jogo para a equipa ganhar”. O pequeno craque da pêra e do bigode na cara não fica sem uma história para contar — fica com uma diferente. Porque muito terá a dizer da seleção que jogou muito, com muitos passes e muitos jogadores a trocarem de posições. Que marcou à brava (sete golos), mesmo sem um avançado dos verdadeiros a ser titular. Que só sofreu um golo e foi aos 90′ de um jogo. Que fez brilhar vários jogadores e provou que, em Portugal, houve e continua a haver muitos jovens a jogarem bem à bola. E que Rui Jorge, o selecionador, sabe bem como puxar por eles.

“E depois, avô?”, perguntaria o neto, sedento por ouvir mais histórias além desta com um final infeliz. E será aqui que o velhote Bernardo se levantará para ir à cozinha e de lá voltar com um copo de água. Porque a garganta terá de estar fresca para contar o muito que se terá passado a seguir. Sim, as histórias, a dele e a de muitos outros desta seleção, prometem não ficar por aqui. Não foi por acaso que o tal Guidetti, após a final, disse isto: “Em 10 jogos, eles provavelmente ganhariam mais vezes do que nós. São uma equipa fantástica com jogadores incríveis.” Cuidado, Fernando Santos, eles vêm aí.