Era uma vez, num reino não muito distante, um soberano que não ia nu, mas sim choroso. Porque chora o rei? É este o dilema que os habitantes daquele lugar, chamados Pais e Mães, tentam resolver ao longo da história criada por Ana Leonor Tenreiro e Pedro da Silva Martins. Longe de ser um manual para decifrar o choro dos bebés, Porque Chora o Rei tem tanto de desabafo como de partilha entre pais. E lembra que, por vezes, a resposta é mais simples do que parece.
Na primeira página, fica-se a saber que o livro de estreia de Pedro da Silva Martins, guitarrista, compositor e letrista dos Deolinda, é dedicado a dois monarcas, chamados Eduardo e Ricardo. Não têm coroa, nem sequer têm dentes. Não sabem ler nem escrever, mas ditam as leis. Quem são, afinal? “Um deles é o nosso soberano lá de casa, que é o Ricardo”, contaram os autores ao Observador. O casal estreou-se na paternidade em setembro de 2013 e foi essa nova realidade que deu origem à história.
“A ideia surgiu no final de um daqueles dias cansativos em que não percebemos nada do que se passou“, contou o músico dos Deolinda, lembrando as dúvidas que todos os dias se multiplicam na cabeça de quem foi pai há pouco tempo. “Às tantas a Leonor sai-se com a expressão ‘para o reino dos pais sem tempo’, que depois deu origem à história”. Pensaram em escrever o conto para oferecer ao filho no Natal. Mas a falta de tempo atravessou-se no caminho e o texto acabou por ficar pronto apenas no final do ano.
O outro rei é o filho do ilustrador João Fazenda, que pintou as letras da história. “O Eduardo é cerca de meio ano mais velho do que o Ricardo. Foi também esse o elo de ligação do João com a história, porque ele também está a passar por este reinado”, disse Pedro. “Conseguiu traduzir muito bem aquilo que nós tínhamos na cabeça”, completou Leonor. “Era quase uma missão conjunta de desabafo, de partilha e de criatividade. Porque é preciso muita criatividade para continuar a fazer perguntas, sem a certeza de ter as respostas todas. Sem livro de instruções, só pode haver um livro de perguntas e Porque Chora o Rei? é apenas uma, simbólica para muitas outras”.
Ao longo de 32 páginas, os Pais e as Mães deste reino veem-se aflitos para decifrar o choro do rei. E tentam de tudo para o acalmar, desde agasalhá-lo a refrescá-lo, dar-lhe um biberão de leite morno e até embalá-lo para que durma. Ou melhor, quase tudo. Quando alguém sugere que talvez o rei tenha cocó na fralda, todos assobiam para o lado.
No reino descrito no livro existem tradutores oficiais que tentam melhorar a comunicação entre os habitantes e o monarca. Só que, mesmo munidos de muito conhecimento, falham na interpretação da mensagem. Uma crítica às sugestões que os pais recebem a toda a hora? “Sim, sim. E a certa altura confunde”, admitiu Leonor. “Muitas vezes são bem-intencionadas, só que, de facto, como eu gosto muito de falar e de ouvir, permito muita invasão [risos]. E quando há tempo para o ler [ao Ricardo] exatamente como ele é, com as necessidades que tem, nós, pais, aprendemos muito”, disse. Para ler o filho “é preciso fechar janelas ao ruído”. E arranjar tempo, esse bem cada vez mais escasso. “Às vezes, a resposta ao choro é muito simples. Mas estamos tão ocupados na nossa vida…”, completou. Pedro e Leonor já compreendem melhor o choro do rei que mora lá em casa. Até porque, prestes a fazer dois anos, já se expressa verbal e gestualmente. “Mas às vezes chora e nós não entendemos à mesma. Continua a ser um enigma para nós”, confessou o letrista dos Deolinda.
Porque Chora o Rei? foi escrito a pensar no novo membro da família, mas os pais escreveram-no também para si, admitiu Leonor. “É um bocadinho para nos rirmos e purgarmos as dores da paternidade. Que não é tudo rosas. O lado do humor é muito importante nisto tudo, porque sem ele não é possível”. As diferentes camadas de leitura fazem com que a história faça sentido para leitores de todas as idades. Se for uma leitura partilhada por todos, “vai ser um belo momento de família”, acrescentou Pedro. “Para mostrar que os pais não sabem tudo. Os mais pequenos levam-nos mais a sério quando nós não só fazemos figuras tristes como nos pomos a um nível real. Não é que não haja autoridade, não é que não haja disciplina, mas para eles saberem que nós temos dúvidas. Que os pais não são perfeitos.
Ana Leonor Tenreiro já se tinha estreado na escrita infantil em 2010, com o livro O Homem Que Ia Contra as Portas. Atualmente dedica-se à formação de escrita criativa. Já para Pedro da Silva Martins esta foi uma estreia absoluta. Já tinha criado o espetáculo infantil “Retrato Falado”, em colaboração com João Fazenda, que estreou em outubro do ano passado, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Mas publicar um livro é diferente.
“Era um desejo que tinha, escrever. E é uma ideia que me acompanha há muito tempo, escrever algo que não seja música. Como estou metido na música tenho alguma dificuldade em sair daquele registo. É como se mudasse de repente o interruptor para algo diferente”, contou. A experiência correu bem e é para repetir. “Tenho histórias na cabeça, não só para a literatura infantil mas também para outras áreas. Gostava de trabalhar ficção. Vamos ver como me consigo organizar”. Assim o rei o permita.