Foi preciso ver o novo filme de Woody Allen, “Homem Irracional”, para perceber que a filosofia pode ser “sexy”. Joaquin Phoenix interpreta Abe Lucas, um professor com fama (e proveito) de ser heterodoxo, inquieto, mulherengo e copofónico, que vai dar um curso de Verão numa universidade pacata e bucólica, e está completamente na mó de baixo, física, mental e sexualmente. Mas mesmo assim consegue deixar pelo beicinho Jill (a fresquíssima, estonteante, estimulante Emma Stone, no seu segundo filme com o realizador após “Magia ao Luar”) a aluna mais bonita, “gamine” e inteligente do seu curso, e Rita (Parker Posey, a rainha dos filmes “indie”, três vivas para a rainha), uma colega quarentona e ninfomaníaca. (Eu sabia que devia ter ido para Filosofia!).
“Trailer” de “Homem Irracional”
Abe está tão sem jeito que, por um lado, recusa os avanços amorosos de Jill, preferendo manter com ela uma relação estritamente platónica, e pelo outro não consegue funcionar na cama com Rita. Isto enquanto nas aulas, e a quem o quer ouvir, apregoa um niilismo existencialista tendência “Selecções do Reader’s Digest”, postulando ainda que a filosofia é essencialmente, “masturbação verbal” e, num convívio com alunos, chega a jogar à roleta russa com o revólver do pai da rapariga que dá a festa, para mostrar o carácter aletório da existência e o seu desprendimento e indiferença para com todas as coisas do mundo, inclusive a vida, como se um balázio na cabeça pudesse conter uma lição de desespero metafísico.
Entrevista colectiva com Woody Allen, Emma Stone e Parker Posey
Um dia, Abe e Jill estão num restaurante, quando ouvem, numa mesa ao lado, o relato de uma revoltante injustiça que vai ser cometida por um juiz venal e parcial. O professor decide então fazer algo de útil ao seu semelhante e, invocando o seu sentido de justiça e em nome de um bem maior, envenena habilmente o magistrado. Descobrindo que, ao invés de o deixar atormentado, o acto de matar outra pessoa lhe devolve o prazer de estar vivo, de pensar e de escrever – e a potência sexual. Abe sente-se bem por ter feito a coisa errada pelas razões certas, nem sequer considerando que esse bem que sente radica num mal, e que a justa indignação moral que o levou a cometer um crime é passível de abrir as portas à mais completa amoralidade. Ou seja, o mal pode muitas vezes nascer da vontade de fazer o bem, e o irracional manifestar-se num homem que vive e ganha o pão de cada dia pelo exercício da razão.
Entrevista com Joaquin Phoenix
As grandes preocupações existenciais de Woody Allen transitam de filme para filme, embora assumindo registos diferentes, e “Homem Irracional” comunga das que já foram expressas, embora de forma mais sombria e sisuda, em fitas como “Crimes e Escapadelas”, “Match Point” e “O Sonho de Cassandra”. O significado profundo da vida e dos actos que praticamos em nome daquilo em que acreditamos ou desejamos, o crime e a paz de espírito ou a culpa que se lhes segue, o castigo ou a impunidade, a justificação moral ou não da prevaricação, e ainda, “last but not least”, o papel do acaso e do aleatório, muito importante para a resolução da presente história.
Cena de “Homem Irracional”
Em “Homem Irracional”, o assassínio tem o efeito de um Viagra físico, anímico, intelectual e sexual para Abe Lucas, bem como um anestesiante da consciência, pelo que ele não quer de forma alguma voltar a sentir-se como dantes. O que implica não ser apanhado, mesmo que para isso tenha que tomar decisões que sacrifiquem pessoas que lhe são queridas. Este filme que começa como uma comédia romântica e se transforma num “thriller” filosofante e dostoievskiano “light”, piscando despretensiosamente o olho a Sartre e a Patricia Highsmith, a Nietzsche e ao Hitchcock de “A Corda”, é rodado com uma leveza peso-pluma e servido por uma banda sonora que, ao juntar o jazz swingante com Bach, figura esse difícil equilíbrio entre estilo e tom ligeiros e reflexão séria sobre as funduras da alma humana que, no actual cinema americano, apenas Woody Allen é capaz de conseguir alcançar. (De notar ainda a hábil narração a duas vozes, com uma surpresa mesmo no final).
https://youtu.be/geRt0k6Jzxs
Tema musical de “Homem Irracional”
Só mesmo Woody Allen para abrir um filme com uma personagem principal a citar Kant, para nos conseguir convencer que Joaquin Phoenix é um carismático e brilhante professor de filosofia, e que a especulação intelectual profunda é mel para as mulheres de todas as idades e libidos, e levar a sua avante.