O skate está na mão, encurralado entre o braço e o tronco. A t-shirt, larga demais para o corpo esguio, acompanha o boné que lhe tapa a cabeça, com a pala apontada para as costas. É assim que Jorge Simões aparece enquanto o sol raia na Praça Luís de Camões, em Lisboa. Só podia. O estilo nota-se a léguas e denuncia-o como alguém que leva o skate muito a sério. Tanto que, três dias antes e nem a um quilómetro dali, na Praça da Figueira, venceu uma prova que está para o skate como a Liga dos Campeões está para o futebol. A comparação é dele, quando tem de explicar o que significou vencer o Red Bull Skate Arcade. Sabe que vive num país onde nenhum desporto seduz tanto como o futebol e, por isso, foi-se habituando a fazer estas analogias.

Até ele foi quase seduzido pelo jogo da bola que move milhões. Aos nove anos o jeito para a coisa fez com que um convite do Boavista aparecesse, na mesma altura em que o primo lhe mostrava um skate. O amor pelas tábuas ganhou ao gosto pela bola e preferiu o skate. “Para mim não foi difícil esquecer o futebol, só para o meu pai. Ele queria muito que jogasse futebol, chegou a ser guarda-redes”, confessa na conversa com o Observador, que apanha boleia no discurso acelerado e sem travões de quem, aos 20 anos, já foi campeão nacional, em 2014. Aprendeu tudo no Porto, cidade sem parques de skate, onde já se fartou de cair nas ruas e onde hoje o mandam “ir trabalhar ou estudar” quando o veem passar. “Ainda há pessoas que veem o skate como um ato de vandalismo”, chega a lamentar.

Mas são as manobras que faz em cima de uma tábua com rodas que lhe valem os apoios e patrocínios que, ao final do mês, chegam para Jorge receber perto do salário mínimo nacional. O objetivo é chegar aos EUA, dar nas vistas, tornar-se profissional e manter-se por lá: “Até te fazem uma festa e entras para a equipa profissional da marca que te patrocina”.

A vitória de sábado foi a mais importante?

Foi uma das. Era um campeonato mundial… Mas provavelmente sim, foi a melhor.

Estavas aí na dúvida.

Porque houve uma em que fiquei em segundo, no Amesterdam AM, um campeonato feito cá na Europa, mas que conta para outro, que é mundial, o Tampa AM, dos EUA. Fiquei em segundo e deu mais visualização no mundo do skate americano.

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Vives num país onde a maior parte das pessoas só pensa em futebol…

Sim, está um bocado fechado.

Se tivesses que colocar a conquista de sábado em perspetiva, como o farias?

Acho que diria que é quase como uma equipa portuguesa ganhar a Champions. É um campeonato importante, que toda a gente vê e está a par.

Os portugueses ainda estão longe de acompanharem o skate a sério?

Já estiveram mais. Há cada vez mais pessoal a andar de skate e agora há a Fuel TV, que ajuda imenso. Oiço pessoas a dizerem que me viram na televisão e tal, a descer corrimões. Acham piada. Até há clientes da minha mãe que lhe perguntam se o filho não é aquele rapaz que aparece na Fuel. É engraçado. Acabam por ver o skate de maneira mais divertida e não como um ato de vandalismo, de partir pedras e descer ruas a abrir.

Foto: Hugo Silva/Red Bull Content Pool

Foto: Hugo Silva/Red Bull Content Pool

O skate ainda tem muito essa imagem?

Um bocado. Um bocado. Sobretudo o pessoal mais idoso: “Ah, andas aí a rolar no chão. Partes tudo, vai mas é estudar!”.

Já te chatearam muito?

Tantas vezes. Dizem-me coisas como “isto não é para andar de skate, vai trabalhar”, ou “os teus pais não te dão educação”.

Respondes ou não?

Houve uma altura que sim, mas agora ignoro ou digo “‘tá, tchau”.

É por isso que no Porto chegaste a criar um skatepark com uns amigos?

Sim. Lá no Porto, após várias tentativas de reuniões com vários representantes da câmara que não deram em nada. Então soubemos de um espaço abandonado, uma antiga fábrica da Tinta Faísca. Juntámos todos dinheiro para comprarmos coisas na skateshop local e decidimos fazer um mealheiro. Qualquer pessoa que quisesse contribuir, nem que fosse com um cêntimo, podia ir lá. Passados dois meses já estava cheio e marcámos um evento no Facebook. Começámos a construi-lo durante o inverno e no verão tínhamos o parque feito. Isto aconteceu no ano passado. Mas veio este inverno e os drogados roubaram-nos os corrimões e os ciganos partiram-nos as rampas. Agora está tudo degradado.

Vão fazer outro?

Estamos a pensar nisso, mas, se fizermos, será tudo em cimento. Não vale a pena estarmos a gastar dinheiro para nos andarem a roubar.

Quanto gastaram ao todo?

Uns 300 ou 400 euros, a dividir por todos. Os que deram menos trabalharam depois mais a construir o parque, por exemplo.

Esta vitória no prova da Red Bull não pode ser um incentivo para que a Câmara Muncipal do Porto construa um parque de skate?

Estas coisas ajudam, sim. Quando fui campeão nacional, por exemplo, apareci logo na televisão. Mas até hoje ainda não se viu nada.

E para ires para os EUA, já ajuda?

Vou no final do ano e ficarei por lá um mês e meio. Não tenho dinheiro para ficar mais tempo. Para o ano pretendo ir outra vez, mas convém estar sempre a viajar para todo o lado.

Porquê?

Só consegues levar o skate como um desporto profissional quando és pago para o praticar. Mas, dentro do mundo do skate, isso também só acontece quando tens uma tábua com o teu nome escrito. Aí és considerado profissional, até te fazem uma festa e entras para a equipa profissional da marca que te patrocina. Há três níveis: há os atletas apoiados, a equipa amadora e depois a profissional.

Já tiveste abordagens?

Ainda não.

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Existe algum país na Europa onde seja possível ser profissional ou só é mesmo possível nos EUA?

Haver até há. Barcelona, por exemplo. Mas é nos EUA que estão as marcas grandes, as que te pagam mais e as que vão trabalhar melhor contigo.

Quanto ganhas a viver do skate em Portugal?

O salário mínimo, mais ou menos. Depois vou recebendo tábuas e alguns prémios das provas, que também ajudam. Como vivo com o meu pai acabo por não gastar assim tanto dinheiro e vou conseguindo juntar. Depois, por exemplo, a DC dá-me anualmente uma quantia para viagens e posso usá-lo como eu quiser. Em abril estive três semanas na China e agora vou para os EUA também com esse dinheiro.

No futebol ganharias mais.

Isso é verdade [ri-se, timidamente]

Ouvi dizer que estiveste quase para apostar na bola, não foi?

Sim. Recebi um convite do Boavista para ir para as escolinhas quando tinha nove anos. Só que foi na mesma altura em que comecei a andar de skate, com o meu primo. Foi amor à primeira vista. Para mim não foi difícil esquecer o futebol, só para o meu pai. Ele queria muito que jogasse futebol, o meu pai era guarda-redes. Mas ele aceitou e agora, no sábado, quando acabou o campeonato, liguei-lhe: “Então, ganhaste?”, perguntou-me, num tom irónico. Eu disse que sim e ficou surpreendido, não estava à espera. Depois foi-me ligando durante a noite inteira, ficou muito contente.

Aprender a andar de skate é mais difícil do que aprender a jogar futebol?

É estranho, porque é uma coisa que depende muito da coordenação. Para dar um ollie [manobra básica, que não passa de um salto] é preciso um pé atrás, um à frente, depois empurrar o da frente, dar aquele jeitinho. Quando se apanha aquela coordenação que fica no cérebro é fácil, mas até lá chegarmos é complicado. Ainda hoje é difícil aprender uma manobra porque o cérebro demora a memorizar um movimento.

Depois há a diferença da dor.

Sim, hoje em dia magoo-me mais. Tento arriscar mais e as quedas são feias. Já parti o pulso e vários dedos. Mas a pior foi quando quase parti o pé. Chorei tanto. Fiquei com uma entorse grave [arregaça as calças, baixa a meia que tem no pé direito e mostra o inchaço no tornozelo], tive que usar muletas durante duas semanas e depois passei pela fisioterapia.

Qual foi a manobra que mais te custou a aprender?

Assim de repente nem sei. Mas nem sempre é a manobra que mais custa, é mais o sítio onde estás a andar. Mas provavelmente foi o 360.º Flip, que é das minhas preferidas. Lembro-me que aprendia-a e esquecia-me logo de como se fazia. Durante imenso tempo não a consegui repetir. A vantagem é que aprendes as manobras muito rápido, num dia ou dois, porque estás constantemente a tentar e, por isso, sempre a evoluir.

Jorge Simões a deslizar sobre um corrimão no Red Bull Skate Arcade de 2013, em Barcelona. Foto: Alberto Polo / Red Bull Content Pool

Jorge Simões a deslizar sobre um corrimão no Red Bull Skate Arcade de 2013, em Barcelona. Foto: Alberto Polo / Red Bull Content Pool

Lisboa não tem muitos parques de skate. No Porto há locais para treinar?

Aqui há um no Parque das Nações, que é muito bom. Mas no Porto não há, é só rua. Por isso é que estou muito habituado, ando de skate na rua todos os dias. Estou habituado a chão mau, irregular, de cair e de me raspar todo no alcatrão. Às vezes caio e já nem me dói, parece que tenho calo. Lá no Porto andamos muito na câmara de Matosinhos, na Casa da Música, na Praça dos Leões. E pronto, é rua pura.

Então como fazes quando chegas a uma prova com half-pipes?

O pessoal aqui de Lisboa tem mais facilidade por causa dos parques, mas nós, no Porto, somos péssimos a andar nisso, mesmo. Consigo fazer algumas coisinhas, embora seja completamente diferente. Tens que saber impulsionar-te para a frente, até um ollie é feito de outra forma.

Não ajudava que existissem escolas de skate?

Já começa a haver. Mas o pessoal do skate não adere muito a isso. No surf, por exemplo, em que houve um boom e apareceram muitas, é mais individual, porque vais para a água, sozinho, e concentras-te em ti. Sempre tive essa impressão. Enquanto no skate estás sempre no mesmo sítio, acompanhado, a pedir conselhos aos outros. É uma coisa entre amigos, que se ajudam mutuamente. Nunca gostei muito, mas já vejo miúdos a andarem imenso no Parque das Nações por estarem a aprender em escolas de skate. Mas acho que é sempre possível aprender fora delas. Os mais velhos, os profissionais, sabem todos andar e nenhum teve que andar numa escola.

Passaste pela fase de estar agarrado aos jogos do Tony Hawk sempre que estavas em casa?

[Ri-se]. Passava horas e horas a jogar isso na PlayStation. Foi assim que aprendi a dar um ollie. Punha a câmara do jogo de lado, mais perto do boneco, carregava no botão “x” para ele dar um ollie e via como se fazia. Estive dois anos a andar de skate sozinho. Durante esse tempo só sabia dar ollies e foi assim que aprendi.

Hoje ainda jogas?

Já não, mas jogo um que é o Skate 3.

O Tony Hawk é o skater que mais gostavas de conhecer ou há outro?

Era outro, sim. O Luan de Oliveira [brasileiro]. Mas não é uma coisa que sinta muita falta. Dá-me mais pica andar de skate com os meus amigos do que andar na esperança de um dia conhecer um profissional. O ambiente de convívio é o que mais ajuda na aprendizagem.

Ainda és muito novo. Como te imaginas daqui a 10 anos?

Ora bem, já vou estar com 30, por isso imagino-me a ser profissional, a estar a viver do skate há muito tempo. Estar tranquilo, não digo cá, talvez em Los Angeles, já com família criada lá.

E a idade da reforma?

Isso é até o corpo aguentar! O Francisco Lopez [português, já foi três vezes campeão nacional] tem quase 40 anos e continua a dar coças a todos. Só vou parar quando o corpo não me deixar mais.

O skate é um desporto que te obriga a cuidar do corpo?

Hoje já há profissionais que se preocupam muito com a alimentação e até vão ao ginásio quase todos os dias. Correm e até vão à fisioterapia com elásticos, para trabalhar a flexibilidade dos músculos. Eu não tenho paciência para isso.

Mas pode fazer muita diferente?

Acho que ajuda. Sobretudo na resistência e nas dores musculares. Estou aqui todo partido, por exemplo, porque a seguir à prova, no sábado, ainda fui saltar escadas. Ainda me doem um bocado às pernas. De vez em quando até vou andar de bicicleta ou correr um bocadinho, mas estar no ginásio, a puxar e a varrer as máquinas não é para mim. Nem tenho tempo, porque ando de skate todos os dias, mais ou menos das 14h às 20. E a manhã, para mim, é para dormir.