Um político a pedir a intervenção das entidades reguladoras no caso de um programa de humor é um caso raro em Portugal, mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já tem experiência em multar humoristas. Em 2011, a SIC foi condenada a pagar 20 mil euros por, digamos, excesso de humor.

O presidente do Partido Democrático Republicano, António Marinho e Pinto, apelou terça-feira à intervenção da ERC e da Comissão Nacional de Eleições (CNE) devido ao conteúdo do programa “Isso é tudo muito bonito, mas” apresentado por Ricardo Araújo Pereira, na véspera, que mostrava uma pessoa a urinar para uma fotografia com a sua cara.

O porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE), João Almeida, disse ao Observador que “a haver alguma apreciação” esta só pode ser “feita no termo do processo eleitoral”. E acrescentou que a CNE “vai apreciar a queixa” se esta for formalizada, mas dificilmente a vai “resolver” porque o programa em questão “não é noticioso”, está, antes, no género do entretenimento.

À CNE, já chegaram várias participações de cidadãos em relação ao programa em causa, devido a “comentários e humor, por vezes, corrosivo” que atingiram as “candidaturas com que simpatizam”, revela o porta-voz. Mas tudo isto está fora do alcance da CNE – que só analisa infrações cometidas durante os tempos de antena.

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Não se alongando em comentários sobre o motivo de indignação de Marinho e Pinto, o presidente da ERC, Carlos Magno, por seu lado, faz apenas uma analogia com ‘as cantigas de escárnio e maldizer’, obras da literatura portuguesa que, diz, tinham uma espécie de código de honra. “O humor contido tinha que fazer rir o próprio visado. Se o visado não se risse, não era uma cantiga”, afirma ao Observador.

Não será a primeira que a ERC se pronunciará sobre uma queixa dirigida a um humorista. Em 2011, a SIC foi multada em 20 mil euros devido a um sketch humorístico de Rui Sinel de Cordes, emitido na SIC Radical. Ao Observador, o humorista critica a atitude de Marinho e Pinto e faz um elogio ao humor irreverente do “Isto é tudo muito bonito, mas”.

“Não acho mal que se mostrem imagens do Marinho e Pinto a levar com urina na cara, acho é que sabe a pouco. Podemos ir mais longe, com o Marinho e com os outros. Chega de humor chato que é pensado para não chatear”, disse. “Precisamos de mais programas de humor, sem medos e sem humoristas xoninhas. Os políticos têm vida fácil por cá. Eram precisos mais Jon Stewarts, John Olivers e sim, mais RAP’s [Ricardo Araújo Pereira] em Portugal”, acrescentou, agradecendo a Araújo Pereira por não deixar que este tipo de processos seja “uma coisa apenas de humoristas marginais”.

O caso de Rui Sinel de Cordes

A 30 de março de 2011, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) instaurou um processo de contra-ordenação ao programa “Rui Sinel de Cordes – Especial de Natal”, da SIC Radical, que foi emitido na tarde de 24 de dezembro de 2010, por considerar que infringiu a Lei da Televisão – que obriga a que a emissão de “quaisquer programas susceptíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou de adolescentes” seja feita apenas no horário noturno, entre as 22h30 e as 6h.

A emissão do programa foi antecedida da seguinte mensagem: “O programa que se segue não é aconselhado a menores. Mais, não é mesmo indicado a todos os que se ofendam com facilidade. ‘Rui Sinel de Cordes’ é um programa especial de humor, por vezes de mau gosto. Nele está representada a visão crítica do autor sobre o Natal, muitas vezes sob a forma do exagero”. Mas, ainda assim, a ERC encontrou conteúdos que considerou serem relevantes para a abertura de procedimento. Conteúdos de violência física e psicológica, referências discursivas à sexualidade ou referências com incidência na dignidade humana e direitos, liberdades e garantias foram alguns dos identificados pela entidade reguladora.

O Conselho Regulador da ERC notou quatro situações nas quais considerou poder ter ocorrido “a violação dos limites à liberdade de programação”: “recriação das figuras do presépio com recurso a associações simbólicas desprimorosas”; “sequestro e tortura de um pai natal”; “referências às vítimas de pedofilia da Casa Pia”; “referência a crianças com síndrome de Down”.

A entidade reguladora argumentou que “não está em causa a legitimidade de o humorista expressar a sua visão do Natal – ou, aliás, do que quer que seja”, mas sim a presença de conteúdos que desrespeitam a “dignidade das pessoas”, prejudicam “a formação de personalidade dos públicos mais jovens” e/ou contribuem para a “estigmatização de pessoas ou grupos”. Mas porque “o exercício da liberdade de expressão, ainda que no campo do humor, não pode ser utilizado como estandarte à sombra do qual se perpetrem ofensas que visem enxovalhar, desprestigiar, rebaixar ou humilhar determinado grupo de cidadãos ou indivíduos”.

Entretanto, a SIC esclareceu que o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa revogou, a 30 de abril de 2012, a decisão ERC e absolveu a SIC, não tendo esta que pagar a multa. Uma das testemunhas da SIC foi Ricardo Araújo Pereira, que depôs enquanto ‘perito’ na área do humor.

Na sentença do Tribunal, a que o Observador teve acesso, pode ler-se que a ERC não tinha definido os “critérios objetivos que concretizam a suscetibilidade de um determinado conteúdo de um programa influir, de modo negativo, na formação da personalidade de crianças e adolescentes”, pelo que a SIC não podia saber se estava a “transmitir um conteúdo suscetível” ou não. Lê-se ainda que a as conclusões da ERC foram tiradas através de uma “perspetiva moralista e não objetiva”. Assim, o Tribunal decidiu pela absolvição da SIC.

*Editado por Helena Pereira

(Artigo atualizado às 19h48)