Svetlana Aleksievich foi galardoada com o prémio Nobel da Literatura 2015, anunciou esta quinta-feira a Academia Sueca, em Estocolmo. Raramente o prémio foi entregue a autores de não ficção. Em 112 galardoados, contam-se apenas 14 mulheres.
Os livros de Aleksievich são todos não ficção e centram-se na história da União Soviética e na identidade russa. Sara Danius, Secretária Permanente da Academia Sueca, justificou a decisão “pela sua escrita polifónica, um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo“. À televisão pública sueca SVT, Sara Danius revelou que acabara de falar com a laureada e que ela apenas disse uma palavra: “Fantástico!”. No momento do anúncio, os jornalistas presentes na sala aplaudiram a escolha:
A spontaneous round of applause among the gathered journalists. Popular choice among the media corps! pic.twitter.com/7ZArlZ6ylU
— The Nobel Prize (@NobelPrize) October 8, 2015
No ano passado, a empresa de apostas britânica Ladbrokes colocava em terceiro lugar a jornalista bielorrussa de investigação. A seguir estava Patrick Modiano, o francês que acabou por vencer o Nobel. Ao contrário do que é habitual, desta vez os prognósticos confirmaram-se e a bielorrussa, que era a favorita, foi a vencedora entre os 198 nomes recolhidos pela Academia Sueca.
Só há um livro de Svetlana Aleksievich publicado em Portugal. Trata-se de O Fim do Homem Soviético – Um Tempo de Desencanto, publicado em abril deste ano pela Porto Editora. Para 2016 já está prevista a publicação de Vozes de Chernobyl (título provisório), pela Elsinore, assinalando assim os 30 anos passados sobre o desastre.
Svetlana Aleksievich nasceu na União Soviética, em território ucraniano, a 31 de maio de 1948, filha de pai bielorrusso e mãe ucraniana. Quando o pai terminou o serviço militar, a família mudou-se para a Bielorrússia, onde os pais trabalharam como professores.
Aleksievich estudou jornalismo na Universidade de Minsk, entre 1967 e 1972. Durante os primeiros anos em que trabalhou em jornais, foi recolhendo o material com que haveria de escrever o livro de estreia, War’s Unwomanly Face, em 1985. Para o fazer, pediu emprestados cinco mil rublos, tirou férias, comprou um gravador de cassetes e viajou pelas cidades e aldeias da União Soviética para registar as memórias das mulheres que estiveram na Segunda Guerra Mundial, pode ler-se numa entrevista conduzida por Natália Igrunova.
War’s Unwomanly Face foi o primeiro livro do ciclo “Voices of Utopia”, onde se inserem também The Last Witnesses (1985), The Boys in Zinc (1989) e The Chernobyl Prayer: the Chronicles of the Future (1997). O livro que encerrou este ciclo foi precisamente O Fim do Homem Soviético.
O escritor que mais unfluenciou Aleksievich foi o bielorrusso Alés Adamóvich. Foi depois de ter lido um livro dele que começou “esta enciclopédia ‘vermelha’ de mais de 30 anos” chamada “Voices of Utopia”, explicou a Natália Igrunova. “Procurei o meu género durante muito tempo – para escrever da mesma maneira que o meu ouvido ouve. E quando li o livro Sou de Uma Aldeia de Fogo, compreendi que isso era possível”.
Na sua obra, a polifonia elogiada pela Academia Sueca traduz-se na forma como a jornalista dá voz a centenas de testemunhos, homens e mulheres protagonistas anónimos da história, a favor ou contra um regime.
“Não estou preparada para julgar como politóloga ou como economista. Queria simplesmente organizar todo esse caos. A sociedade desintegrou-se, atomizou-se, uma grande quantidade de ideias trabalham neste espaço. A minha tarefa era escolher as principais direções das correntes enérgicas da vida, dar-lhes uma forma literária, fazer isso com arte.
Queria que cada qual gritasse a sua verdade. Deixei falar toda a gente: os carrascos e as vítimas. Estamos habituados a sentir-nos uma sociedade de vítimas. Mas a mim sempre me interessou porque é que os carrascos estão calados? Porque é que o bem e o mal se igualaram?”.
Por causa da sua posição crítica ao regime de Alexander Lukashenko, o homem que governa de forma autoritária a Bielorrússia desde 1994, Aleksievich viveu em países europeus como Itália, França, Suécia e Alemanha durante alguns anos. Mas, em 2011, regressou à capital bielorrussa, Minsk. Neste momento está a preparar dois livros, mas não adiantou o tema, nem quando estarão terminados.
O Nobel da Literatura é o prémio de maior prestígio para um escritor. Svetlana conta com outros prémios importantes no currículo, como o Erich Maria Remarque Peace Prize (2001) e o National Book Critics Circle Award (2006). O Fim do Homem Soviético, recebeu o Prémio Médicis Ensaio, em 2013, e foi considerado o Melhor Livro do Ano pela revista Lire.
“A recolha de testemunhos fará as delícias de qualquer comunista ou ex-comunista nostálgico”
Carlos Vaz Marques, diretor da revista literária Granta, só leu O Fim do Homem Soviético. Ao Observador, reconhece que é “um livro interessante”. Mas, “caso não haja outras obras a justificarem uma ideia diferente”, antes de distinguir Aleksievich, deveriam ter sido dados “todos os prémios literários do mundo a Ryszard Kapuscinski”.
“Para quem quer compreender o ‘fenómeno Putin’ e o seu discurso, este livro explica como os tempos soviéticos se foram tornando simpáticos aos russos, mesmo recordando-lhes os assassínios em massa de Estaline e de Lenine”, escreveu Francisco José Viegas, ex-Secretário de Estado da Cultura, escritor e diretor da Quetzal, sobre o livro publicado em Portugal.
“Tem passagens de uma ‘facilidade’ confrangedora, e a escrita irrita por vezes com o seu excesso de pontuação e reticências – a recolha de testemunhos fará as delícias de qualquer comunista ou ex-comunista nostálgico. Mas, fundamentalmente, é de grande utilidade para explicar Putin e o desejo de reconstrução do império”.
O romancista e jornalista Keith Gessen, americano nascido na Rússia, não esquece o facto de o Ocidente estar “muito chateado” com Putin. “Quando um crítico do regime russo (bem como, neste caso, bielorrusso) recebe um prémio, é difícil não lê-lo como uma repreensão ao Kremlin. Mas sim, é o melhor tipo de repreensão”, disse, citado pelo Guardian.
Saramago foi há 17 anos
A 8 de outubro de 1998, a Academia Sueca anunciou ao mundo o nome do primeiro português a vencer um Nobel da Literatura. José Saramago tinha estado na Feira do Livro de Frankfurt e preparava-se para apanhar o avião de regresso a Portugal, mas, muito surpreendido com a notícia, acabou por regressar à feira, tal era o frenesim à volta do seu nome e da sua obra.
“Eu tenho a consciência de que não nasci para isto. Isso é assombroso, porque cada vez que acontece algo, neste caso o Nobel, eu pergunto-me a mim mesmo se aquilo que eu fiz ao longo da vida, sobretudo nos últimos 20 anos, deu para construir uma obra que chega a merecer o mais célebre prémio literário do mundo. Como é que isto me aconteceu a mim? Uma pergunta para a qual, honestamente, não tenho resposta.”. José Saramago
Svetlana Aleksievich sucede ao francês Patrick Modiano, que venceu o Nobel no ano passado. Para além do prestígio, o vencedor ganha oito milhões de coroas suecas (cerca de 860 mil euros, à taxa de câmbio atual).
Na sexta-feira, as atenções vão estar centradas na Noruega, onde será anunciado o Prémio Nobel da Paz de 2015.
Notícia corrigida às 14h00. Ainda não se sabe se a jornalista publicará um novo livro em 2016.