J.K. Rowling foi uma das escritoras que decidiu não incluir o seu nome no movimento de artistas que pede um boicote cultural a Israel. Mas, para muitos fãs, Harry Potter não estaria do seu lado. Na guerra entre feiticeiros bons e maus que se desenrola nos sete livros da saga, vários leitores enviaram cartas à criadora do personagem, confrontando-a com episódios da história. E ela não os deixou sem resposta.

Recuemos até fevereiro. Mais de 100 artistas do Reino Unido assinaram uma carta onde apelavam a um boicote cultural a Israel, como resposta à guerra em Gaza que se desenrolou durante o verão do ano passado. Desde esse conflito, “os palestinianos não têm tido tréguas dos ataques de Israel às suas terras, à sua forma de subsistência, ao seu direito político de existência”, escreveram artistas como Roger Waters, Richard Ashcroft, Brian Eno.

A 22 de outubro, outros 150 britânicos quiseram mostrar um ponto de vista diferente e publicaram uma carta intitulada “Israel precisa de pontes culturais, não boicotes“. A ideia é que o diálogo é a chave do entendimento e que um boicote é discriminatório e não faz nada pela paz. Nomes como J.K. Rowling, Hilary Mantel e Niall Ferguson admitiram ter opiniões diferentes acerca das políticas do governo israelita, mas partilham “o desejo de uma coexistência pacífica” entre dois Estados.

Ao ver a criadora de Harry Potter na lista, vários fãs da escritora começaram a enviar-lhe cartas usando o feiticeiro de olhos verdes como exemplo. Tantas que J.K. Rowling sentiu a necessidade de se explicar, desta vez numa carta só dela. Um dos grandes argumentos era o de que o diálogo não era solução para a guerra contra Voldemort, o grande vilão da história, e os Devoradores da Morte. Houve até quem fizesse analogias entre os Devoradores da Morte e os soldados israelitas. Nas milhares de páginas escritas por Rowling, a guerra foi feita de lutas entre feiticeiros, não com conversas.

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“Só o diálogo não teria parado a guerra entre feiticeiros, e não parou. O Voldemort acreditava que os não-feiticeiros eram sub-humanos, pelo que é válido comparar Voldemort a qualquer ser humano real que olha para outras raças, religiões e sexualidades como inferiores”, escreveu. E, sim, teria sido um “erro” tentar falar com Aquele-Cujo-Nome-Não-Pode-Ser-Pronunciado ou com Bellatrix Lestrange para que baixassem as suas varinhas e que amassem o próximo, admitiu.

Salvaguardando que cada leitor tem a sua forma de olhar para a história e para os personagens, Rowling conta que muitos leitores incluíram nas suas cartas que “Harry Potter ficaria desapontado” com a sua criadora. E que não entenderia como é que ela foi capaz de assinar aquela carta. Rowling dá-lhes razão, mas só até certo ponto.

“O Harry de seis livros e meio poderia não entender”, escreveu. É “imprudente e revoltado”, por tudo o que lhe aconteceu ao longo do percurso, desde que os seus pais foram assassinados por Voldemort. Até ao momento final e à forma como Dumbledore, um académico apologista do diálogo, se deixa morrer às mãos de Snape, personagem dúbio a quem Dumbledore sempre deu todas as oportunidades. J.K. Rowling embarca nas analogias e lembra que também a comunidade palestiniana sofreu uma “incalculável injustiça e brutalidade”.

“Quero ver o governo israelita ser responsabilizado por essa injustiça e brutalidade. Boicotar Israel em todas as frentes pode ser atrativo. Satisfaz a necessidade humana de fazer alguma coisa, qualquer coisa, face ao terrível sofrimento humano”, defendeu. Mas explicou porque é que nunca poderia assinar uma carta de boicote cultural a Israel.

“Cortar o contacto com a comunidade cultural e académica significa recusar o envolvimento com alguns dos israelitas que são mais pró-palestinianos e mais críticos ao governo de Israel. Essas são as vozes que eu quero amplificar, não silenciar. Um boicote cultural levanta barreiras inamovíveis entre artistas e académicos que querem falar uns com os outros, entender-se uns aos outros e trabalhar lado a lado pela paz.”

Se os fãs da história querem usar partes do livro para mostrar a J.K. Rowling que os seus personagens estariam do lado dos signatários do boicote, a escritora pede para que tenham sempre em conta as atitudes de Dumbledore. “Ele é o coração moral do livro“, confessou.