Os italianos adoram batizar tudo o que é escândalo com um nome. É mais tradição do que mania e já deviam estar com o biscottone na ponta da língua antes de o Grande Prémio de Valência arrancar. Traduzido tintim por tintim, a palavra significa “grande biscoito” e até costuma ser mais utilizada quando há homens aos chutos a uma bola e não quando vários estão a acelerar sentados em motas com 1000cc de cilindrada.
Biscottone é o termo do qual os transalpinos se recordam sempre que há suspeitas de resultados combinados no futebol. Desta vez usaram-no assim que Jorge Lorenzo, espanhol, conquistou o título mundial do MotoGP e não deixou que fosse Valentino Rossi, italiano, a fazê-lo. Aqui o biscoito saiu do pacote e isto explica-se pelas bolachas que se comeram antes do Grande Prémio de Valência.
Land down under, onde tudo começou
“Tenho de ser cauteloso. Estou bastante chateado. Não estava à espera que o Márquez fosse um obstáculo neste campeonato, pensava que estava apenas a lutar contra o Jorge, como deveria ser.”
Valentino Rossi, 36 anos, resolveu desabafar dias depois do Grande Prémio da Austrália. Há meses que andava a reparar em Marc Márquez, 22 anos, e na forma, dizia ele, como o piloto da Honda o estava a prejudicar na luta pelo título. O italiano queixava-se que nos últimos tempos o espanhol estava preocupado em colar-se a Rossi nas corridas para lhe abrandar o ritmo. “Se tivermos outra corrida como a de Phillip Island temos de falar com ele”, sugeriu o “Doutor”, como é apelidado, após uma corrida que Márquez venceu graças a uma ultrapassagem a Jorge Lorenzo na última volta.
Lorenzo é espanhol, tem 28 anos e é companheiro de equipa de Rossi na Movistar Yamaha. Acaba esse Grande Prémio na segunda posição e Márquez impede-o de colher cinco pontos na luta pelo título do MotoGP. “Se de facto o quisesse ajudar não o teria ultrapassado na última volta e ido ao limite, corrido aquele risco”, justifica Marc, algo incrédulo com o queixume de Rossi. Nesta altura, com duas corridas por realizar, o campeonato estava assim: Rossi em primeiro (299 pontos), Lorenzo em segundo (290) e Márquez em terceiro (222). Só um espanhol podia chegar ao título e impedir que Valentino Rossi conquistasse o seu décimo.
Malásia, onde o caldo entornou
O MotoGP chegou à Malásia quente, quase a escaldar como o forno que cozinha uns biscoitos. A corrida era das decisivas e outra vez se viu Marc Márquez colado a Valentino Rossi. O espanhol e o italiano aceleravam pelo terceiro lugar enquanto Jorge Lorenzo já ia longe, a liderar a corrida e com Dani Pedrosa a fazer-lhe sombra. Até que na 13.ª curva da sexta volta à pista Márquez ultrapassa Rossi por dentro. O italiano devolve a gentileza na curva seguinte e, empurrando o espanhol para uma trajetória mais larga, travando a mota e obrigado Márquez a abrandar também.
É aí que a Honda do espanhol cai e o tira da corrida. Fica a sensação que Valentino lhe dá um pontapé. “É claro nas filmagens do helicóptero que não o queria fazer cair. Apenas queria fazê-lo perder tempo, ir por fora da linha e abrandar”, argumentou, ao justificar que o espanhol estava a “fazer um jogo ainda mais sujo do que fizera na Austrália”. Quanto ao pontapé, o Doutor italiano explicou que “o guiador esquerdo da mota de Márquez tocou no apoio de pé” da mota de Rossi, que “fez escorregar a perna”.
O transalpino que sempre correu com o número 46 chega a dizer que um pontapé “não chega para derrubar uma mota do MotoGP”, mas a organização não quer saber — retira-lhe três pontos da classificação e aplica-lhe um castigo. Valentino Rossi fica a saber que partirá no último lugar da grelha no Grande Prémio de Valência, derradeira corrida da época. Com a polémica e o castigo a tabela ficou assim: Rossi com 312 pontos, Lorenzo nos 305 e Márquez com os mesmos 222.
Valência, onde o biscottone apareceu
Jorge Lorenzo agarrou-se à pole position e dificultou a vida a Valentino Rossi, que mesmo assim bem fez pela vida. Antes da corrida não há vivalma em Espanha que não fale da polémica que embrulha a corrida. Até a avó de Marc Márquez diz o que pensa aos jornais — “Eram grandes amigos [o espanhol e o italiano], não entendo porque lhe fez aquele truque sujo. O meu neto tinha Rossi como um Deus” — e a imprensa italiana até chega a noticiar que existe um pacto entre Marc e Lorenzo para que seja um espanhol a vencer o título, que é como quem diz, para não ser Rossi a ganhá-lo.
Mesmo assim, o italiano consegue ultrapassar 10 pilotos logo na primeira volta e, quando faltam 12 para a corrida terminar, já estava no quarto lugar. O problema é que não conseguiu alcançar mais ninguém e o espanhol foi-se mantendo na liderança da corrida — o transalpino, neste caso, teria de terminar na segunda posição para ser campeão mundial. Mas nada feito e Jorge Lorenzo conquistou assim o terceiro título da carreira.
A corrida acaba e Rossi nem aparece na conferência de imprensa. Está fulo e faz questão de o mostrar pouco depois. “Na Austrália, o Márquez não quis que vencesse o Mundial. O Marc fez de guarda-costas de Lorenzo, é uma vergonha para a modalidade. E surpreende-me a predisposição da Honda em ajudar um piloto da Yamaha”, critica, ao tocar no assunto que ainda não tínhamos referido: além de toda esta confusão, Jorge Lorenzo é companheiro de equipa de Valentino Rossi na Movistar Yamaha. “Estou chateado com o Jorge devido à maneira como se portou desde Sepang [circuito do Grande Prémio da Malásia]. Ganhou o título em pista, mas fora dela podia ter sido mais inteligente e lidar com esta situação sem comentários. Sempre que falou foi verdadeiramente estúpido”.
As declarações acentuaram os dois efeitos que esta polémica já tinha causado — os jornais espanhóis a apoiarem Lorenzo e Márquez e a imprensa italiana do lado de Rossi, embora no domingo, em Valência, o público da casa o tenha assobiado várias vezes o agora campeão mundial. É o que dá bater o pé a um dos maiores ídolos do motociclismo, de quem até se diz que Marc Márquez, em criança, tinha um poste colado na parede do quarto. Verdade ou não, isso não impediu que o Corriere dello Sport imprimisse a capa da edição desta segunda-feira com um “Biscottone” bem visível.