Em 2005, quando discursou na Universidade de Stanford, Steve Jobs pediu ajuda para escrever o discurso a Aaron Sorkin, mas acabou por o fazer sozinho, como conta Walter Isaacson na sua biografia do co-fundador da Apple. No início do discurso, Jobs dizia: “Hoje, quero contar-vos três histórias da minha vida. É só isso. Nada de especial. Só três histórias.” Nem por acaso, “Steve Jobs”, o filme de Danny Boyle com argumento de Aaron Sorkin, inspirado no citado livro de Isaacson, com Michael Fassbender no papel principal, é formado por três histórias da vida profissional de Jobs: o lançamento do Macintosh, em 1984; o do esquecido NeXT, em 1988; e o do iMac, em 1998. (Outro filme sobre ele, “Jobs”, de 2013, com Ashton Kutcher, desapareceu sem deixar rasto ou saudades).

(Veja o trailer de “Steve Jobs”)

O propósito de “Steve Jobs” é clarinho, clarinho. Mostrar, através destes três episódios, e de uma combinação de factos e histórias colhidos na biografia de Isaacson, junto de amigos, ex-amigos, colaboradores e familiares do “Sr. Apple”, e de liberdades e compressões dramáticas, que Steve Jobs era um visionário da tecnologia e um revolucionário da sua aplicação à vida quotidiana das pessoas, um homem com um sentido consumado do mercado, e do “marketing”, e um líder nato de equipas talentosas (a certa altura, a propósito de um encontro com o maestro japonês Seiji Ozawa, Jobs compara-se a um chefe de orquestra, que “toca” os seus funcionários como este os seus músicos), mas também um ser humano crivado de falhas. O homem que tinha “a imagem de Ringo Starr” mas sabia que “na verdade era John Lennon”.

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(Veja a entrevista com Danny Boyle)

Não sendo um “biopic” convencional, “Steve Jobs” recorre, mesmo assim, a uma convenção dos “biopics” sobre figuras fora do comum: o génio fascinante que é também muito pouco boa pessoa. Para Boyle e Sorkin, Jobs era inexcedível no que dizia respeito à relação pessoa-máquina. As coisas já fiavam mais fino quando se tratava da relação pessoa-pessoa. Como diz o Steve Wozniak de Seth Rogen a Jobs a certa altura do filme: “Isto não é binário! É possível ser-se um génio e decente.”, rematando: “Os teus produtos são melhores que tu!”. Ao que Jobs responde calmamente: “A ideia é essa mesmo, pá.” Este retrato certamente dará nervoso miudinho, se não mesmo ataques de fúria, aos zelotas do culto da Apple, aquelas pessoas que, nos lançamentos dos produtos da marca, têm comportamentos entre o histérico e o orgásmico e encaram Steve Jobs (que morreu em 2011) como se fosse Deus incarnado, e fazem fila durante horas, ao sol ou ao frio, para os comprar e mergulharem cada vez mais fundo no “iWorld” em que vivemos.

(Veja a entrevista com Aaron Sorkin)

A verdade é que Steve Jobs, com todas as suas raras e inegáveis qualidades para o negócio em que fez fortuna e se tornou num mito, devia ser mesmo um tipo pouco potável (apesar de budista e materialmente desprendido). Para o frisar, o filme usa, como pivô dramático e recorrente dos três episódios, o caso da sua filha mais velha, Lisa, nascida em 1978, e cuja paternidade Jobs passou anos a negar, mesmo depois de um teste de paternidade o ter confirmado. Lisa e a mãe, Chrisanne, estão sempre a aparecer nos lançamentos dos computadores e a atirar-lhe à cara a sua negação contumaz e cruel e a situação financeira precária em que vivem.

(Por trás da rodagem de “Steve Jobs”)

Isto permite ao filme expôr as contradições íntimas de Steve Jobs, fazer luz sobre a sua personalidade, também argumentar em sua defesa e mostrar a sua relação com os mais próximos, de Wozniak (apresentado como o seu reverso da medalha, “melhor a escrever código e muito melhor ser humano”) a John Sculley (Jeff Daniels), o CEO da Apple que fez despedir Jobs em 1985, entre outros. A coincidência destas aparições filiais é obviamente demasiada, e muito forçada, mas Boyle e Sorkin fazem o seu máximo para que o espectador ou não note, ou se abstraia dela. O grau de simpatia ou antipatia deste pela figura de Steve Jobs ajudará a aceitar ou não esta habilidade do argumento.

(O verdadeiro Steve Jobs)

https://youtu.be/GuB-d7jRkCw

Se “A Rede Social”, que Aaron Sorkin escreveu para David Fincher, é um filme sobre pessoas sentadas a falar, “Steve Jobs” é um filme sobre pessoas em movimento a falar. Jobs e companhia não param de se mexer, nem de dar à lingua Esta omnipresença da conversa nos argumentos de Sorkin, mais a estrutura em três “actos” da fita, denuncia o autor de “Os Homens do Presidente” como um dramaturgo constantemente desviado para a televisão e o cinema. Resta a Danny Boyle dar o enquadramento cinematográfico possível à avalanche de palavras, e respectivos confrontos humanos e emaranhados empresariais, fazer o “bonito” ocasional, como na reunião nocturna do conselho de administração em que Jobs é dispensado, numa sala escassamente iluminada, enquanto uma tempestade de inverno estria de água os vidros. E os três “actos” do filme foram rodados, respectivamente, em 16mm, 35 mm e digital, para figurar a evolução tecnológica da Apple.

(Entrevista com Michael Fassbender)

No papel de Steve Jobs, Michael Fassbender nunca procura ser “parecido” com a personagem ou imitá-la laboriosamente, apostando antes numa discreta mas meticulosa personificação, que se manifesta em particular na sua mudança de imagem, culminando no célebre look minimalista dos últimos anos de vida: cabelo curto, barba rala, óculos redondos, “jeans”, pulôver preto de gola alta e ténis brancos. Aí, Fassbender “transforma-se”, de súbito, no Steve Jobs que conhecemos da televisão e dos hiper-mediáticos lançamentos públicos dos produtos Apple. Mas não esqueçamos também Kate Winslet, excelente a fazer de Joanna Hoffman, a sobredotada directora de marketing da Apple, uma das poucas pessoas que fazia frente a Jobs e era a sua Grilo Falante encartada.

(Entrevista com Kate Winslet)

Winslet, e Fassbender, são duas das razões mais fortes para vermos “Steve Jobs”, um filme que, tal como o homem de quem fala, está longe de ser perfeito e honesto, mas mesmo assim tem trunfos e argumentos suficientes e pertinentes para nos interessar, cativar e convencer a comprar o produto.