Há uma questão central na narrativa de José Sócrates sobre a Operação Marquês: o Ministério Público (MP) deixou passar os prazos para encerrar o inquérito quando já devia ter deduzido acusação ou arquivado os autos.

Sendo certo que a lei não impõe nenhum prazo ao MP para encerrar a investigação, visto que os mesmos podem ser prorrogados pelo superior hierárquico (Amadeu Guerra, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal), do procurador titular do caso (Rosário Teixeira), o Observador comparou a Operação Marquês com outros processos igualmente mediáticos para perceber se, de alguma forma, José Sócrates estará a ser prejudicado, como tem alegado desde a sua detenção. E a reposta é clara: não.

Foquemo-nos apenas no período que já dura a investigação e no tempo que José Sócrates esteve preso. As datas são as seguintes:

  • Duração da investigação: tendo em conta que os autos foram abertos a 19 de julho de 2013, o inquérito decorre há 2 anos e 5 meses;
  • Prisão preventiva: cerca de 10 meses

Vejamos agora processo a processo:

  1. Casa Pia

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COURT, LIS09,

Comecemos por um processo que nada tem a ver com a criminalidade económico-financeira alvo da Operação Marquês mas que, em termos de mediatismo, é semelhante ao processo que envolve José Sócrates, não só por envolver o apresentador mais conhecido da televisão na altura, mas por envolver também um alto dirigente político (o ex-ministro Paulo Pedroso, n.º 2 e porta-voz do PS no momento da detenção). O inquérito foi aberto no final de novembro de 2002, na sequência de uma reportagem do semanário Expresso sobre abusos sexuais na Casa Pia, instituição pública sob tutela do governo. O facto da reportagem se basear em diversos testemunhos de ex-alunos, adolescentes no momento da reportagem, levou o Ministério Público a agir e a deter o alvo principal das denúncias: o funcionário Carlos Silvino. A partir daí, o país assistiu estupefacto à detenção do apresentador de televisão Carlos Cruz, do médico Ferreira Diniz, do ex-provedor adjunto Manuel Abrantes, do embaixador Jorge Rito e, finalmente, de Paulo Pedroso (em direto, no Parlamento).

Comparemos apenas a situação de Pedroso com a de Sócrates. O ex-ministro do Trabalho de António Guterres foi detido a 22 de maio de 2003 por suspeita da prática de 15 crimes de abuso sexual de criança e libertado a 8 de outubro de 2003, tendo estado preso preventivamente durante 4 meses e meio por suspeitas de perturbação de inquérito. Em causa estavam os contactos políticos levados a cabo por dirigentes do PS, nomeadamente pelo atual primeiro-ministro António Costa (que foi ministro da Justiça durante o governo Guterres e que era então líder parlamentar do PS) com procuradores (incluindo o PGR da altura, Souto de Moura), juízes e instâncias judiciais antes do momento da detenção de Pedroso. A Relação de Lisboa discordou da decisão do juiz Rui Teixeira e anulou a detenção de Pedroso.

Dez dos 13 cidadãos constituídos arguidos na fase de inquérito foram acusados pelo MP a 29 de dezembro de 2003. A pronúncia para julgamento foi conhecida a 31 de maio de 2004, tendo o julgamento começado a 25 de novembro e durado quase seis anos (leu bem: 6 anos). A sentença do caso foi lida a 3 de setembro de 2010 com a condenação a penas pesadas de Carlos Silvino (18 anos), Carlos Cruz e Ferreira Diniz (7 anos), Jorge Rito (6 anos e 8 meses), Hugo Marçal (6 anos e dois meses) e Manuel Abrantes (5 anos e 9 meses).

Após diversos recursos, reduções de algumas penas na Relação de Lisboa e absolvição no caso de Hugo Marçal, o trânsito em julgado ocorreu em março de 2013.

Duração da investigação: cerca de 1 ano e um mês;

Presos preventivos:

Paulo Pedroso – cerca de 4 meses e meio.

Carlos Cruz – 1 ano e 3 meses

Manuel Abrantes – 1 ano e um mês

Ferreira Diniz – 11 meses

Jorge Rito – 11 meses

2. Face Oculta

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O tipo de criminalidade e a complexidade deste inquérito que tem como principal arguido Manuel Godinho, o célebre sucateiro de Ovar, já se assemelham ao caso que envolve Sócrates. Corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais são os crimes em comum, sendo certo que o caso Face Oculta acabou por envolver vários administradores ou funcionários de várias empresas públicas ou com participações do Estado como a ReferRede Ferroviária Nacional (então gestora das infra-estruturas rodoviárias), a REN – Rede Elétrica Nacional, a EDP e as Estradas de Portugal. Além de Armando Vara, então vice-presidente do Banco Comercial Português (BCP).

Dois pontos colocam estes dois processos em divergência:

  • o número de arguidos (34 cidadãos e 2 empresas) e a documentação bancária e contabilística (além das empresas públicas também a contabilidade do pequeno conglomerado de empresas de Manuel Godinho foi passado a pente fino) do Face Oculta supera a da Operação Marquês;
  • no Face Oculta não houve necessidade recorrer a cooperação judiciária internacional com poucas exceções.

O processo foi aberto em abril de 2009, as buscas que tornaram o Face Oculta conhecido ocorreram um ano depois mas a acusação só foi produzida a 27 de outubro de 2010 – isto é, dois anos depois da abertura da investigação.

Manuel Godinho foi detido a 28 de outubro de 2009 e esteve preso preventivamente até fevereiro de 2011 – altura em que passou a prisão domiciliária com pulseira eletrónica – devido a suspeitas de perigo de fuga, de perturbação de inquérito e continuidade da atividade criminosa. Isto é, esteve preso 1 ano e 4 meses.

O inquérito do Face Oculta foi concluído a 27 de outubro de 2010 – ou seja, 2 anos depois do início das investigações – com uma acusação contra 36 arguidos. Todos os arguidos foram pronunciados para julgamento a 14 de março de 2011, tendo o mesmo iniciado as sessões a oito meses depois.

O julgamento durou quase três anos, tendo os 36 arguidos sido condenados a penas pesadas, com destaque para as penas de prisão efetiva aplicadas a Manuel Godinho (17 anos e seis meses pela prática de 49 dos 60 crimes de que estava acusado) e Armando Vara (5 anos por três crimes de tráfico de influência), José Penedos (5 anos por dois crimes de corrupção e um de participação económica em negócio) e Paulo Penedos (4 anos por crime de tráfico de influência). Os recursos continuam em apreciação.

Duração da investigação: cerca de 2 anos;

Presos preventivos:

Manuel Godinho – 1 anos e 4 meses

3. Isaltino Morais

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Este é um caso que se assemelha à Operação Marquês por ter no centro a Suíça, contas bancárias na Union des Banques Suisses (UBS), transporte de dinheiro vivo em malas e suspeitas de corrupção. A diferença é que Isaltino Morais tinha as contas suíças em seu nome pessoal (não tendo sequer optado pelas contas numéricas que omitem o nome do titular), os ‘correios de dinheiro’ eram funcionários camarários que iam depositar os valores diretamente à Suíça e o valor era muito inferior ao que está em causa na Operação Marquês: 1,3 milhões de euros.

Ou seja, o sucesso da investigação dependeria sempre da colaboração das autoridades helvéticas – que demorou, mas chegou, permitindo até descobrir novas contas bancárias de Isaltino na Bélgica. Em 2002, contudo, a Suíça estava muito renitente em colaborar com autoridades judiciárias de outros países, de forma a proteger o segredo do sucesso da banca suíça: a confidencialidade e o segredo bancário. Daí a razão para a demora na conclusão desta investigação. Só mais tarde, com a pressão cada vez maior da União Europeia que partia da necessidade de combater de forma mais eficaz o terrorismo, a corrupção, a fraude fiscal e o branqueamento de capitais, a Suíça agilizou os seus mecanismos de cooperação.

O inquérito iniciou-se em 2002 com o envio anónimo para a Policia Judiciária de cópias de extratos bancários das contas de Isaltino na UBS – e mais tarde reencaminhando-as, também de forma anónima, para o semanário Independente, o que levou à demissão de Isaltino do cargo de ministro das Cidades e do Ordenamento do Território de Durão Barroso no dia em que o governo comemorava um ano de existência. A acusação só foi produzida quatro anos depois, em janeiro de 2006. A pronúncia para julgamento chegou em dezembro de 2007 mas o julgamento só se iniciou em março de 2009.

O julgamento foi rápido e, 5 meses depois, Isaltino Morais foi condenado a 7 anos de prisão em cúmulo jurídico pela prática de quatro dos sete crimes de que estava acusado: corrupção passiva para acto ilícito, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais, abuso de poder e o pagamento de uma indemnização de 463 mil euros ao Fisco pelos impostos não pagos. A Relação de Lisboa reduziu a pena para um cúmulo jurídico de 2 anos de prisão efetiva, anulando os crimes de corrupção e de abuso de poder.

O que se seguiu depois foi uma novela kafkiana que, com a ajuda de um desembargador da Relação de Lisboa que veio a ser condenado disciplinarmente pela sua ação, Isaltino Morais conseguiu adiar o cumprimento de uma pena transitada em julgado em 2012 (e pela qual até esteve detido durante 24 horas) através de expedientes dilatórios. O ex-presidente da Câmara de Oeiras só foi detido para finalmente cumprir pena de prisão a 24 de maio de 2013 por fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Um ano e um mês depois foi libertado.

Duração da investigação: cerca de 4 anos;

Presos preventivos: Não teve

4. Portucale

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Foi o processo que marcou o fim do governo de Santana Lopes. Pela primeira vez, o Ministério Público acompanhou online aqueles últimos dias em que os empresários tentam tudo por tudo para que os governantes que se vão embora aprovem processos próximos do fim. O empreendimento Portucale, do Grupo Espírito Santo, necessitava de um abate de sobreiros para viabilizar a sua expansão, o que foi conseguido através de um despacho que colheu as assinaturas dos três ministros com poder para essa autorização: Ordenamento do Território (Luís Nobre Guedes – CDS), Agricultura (Carlos Costa Neves – PSD) e Telmo Correia (Turismo – CDS). Pelo meio, Abel Pinheiro, alto dirigente do CDS e responsável pelas finanças do partido, tentava conseguir as assinaturas dos três ministros para que o Grupo Espírito Santo (GES) conseguir alcançar os seus objetivos comerciais.

O inquérito iniciou-se em fevereiro de 2005, no mês em que o PS de José Sócrates ganhou as legislativas antecipadas com maioria absoluta, e só terminou em julho de 2007. Antes da acusação já Luís Nobre Guedes tinha sido inocentado de qualquer responsabilidade criminal (num despacho intercalar muito polémico), enquanto que Costa Neves e Telmo Correia não foram acusados de nada. Abel Pinheiro foi acusado do crime de tráfico de influências e, juntamente, com diversos responsáveis do GES e responsáveis do Ministério da Agricultura, foram pronunciados para julgamento em maio de 2010. A 12 de abril de 2012 todos os arguidos foram absolvidos.

Duração da investigação: cerca de 2 anos e 5 meses;

Presos preventivos: Não teve

5. Vistos Gold

Miguel Macedo, ministro da administração interna,

É o último grande processo a conhecer uma acusação do MP e envolve uma das principais figuras do governo de Passos Coelho: Miguel Macedo, ex-ministro da Administração Interna. E uma das principais medidas de incentivo ao investimento estrangeiro do Executivo PSD/CDS: os vistos gold ou autorizações especiais de residência para cidadãos não comunitários que permitiam a circulação no Espaço Schengen.

A investigação tornou-se conhecida poucos dias antes de José Sócrates ser detido. Também António Figueiredo, então presidente do Instituto de Registos e Notariado, Manuel Palos, ex-diretor nacional do Serviço de Estrangeiro e Fronteira, Maria Antónia Anes, secretária-geral do Ministério da Justiça, entre outros, foram detidos, tendo ficado em prisão preventiva.

Macedo foi acusado de três crimes de prevaricação de titular de cargo politico e um crime de tráfico de influência, enquanto que António Figueiredo foi acusado 12 crimes, entre os quais corrupção ativa e passiva, tráfico de influência e branqueamento e capitais, e Manuel Palo, viu ser-lhe imputada a prática dos crimes de corrupção de passiva e de prevaricação. No total: foram acusados 21 arguidos (17 cidadãos e 4 empresas).

A investigação, a cargo do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, foi relativamente rápida. Iniciou-se em fevereiro 2013 e foi concluída em novembro de 2015.

Duração da investigação: cerca de 2 anos e 9 meses

Presos preventivos:

António Figueiredo – cerca de 1 ano

6. Outros casos: Monte Branco, Furacão e Submarinos

São casos exclusivamente de criminalidade económica e financeira com fins díspares.

O caso Monte Branco foi aberto em 2011, tendo a investigação conseguido desmantelar uma rede de branqueamento de capitais liderada por Francisco Canas e por Michels Canals que prejudicou o Fisco em mais de 100 milhões de euros. Decorridos que estão cerca de mais e quatro anos após o início das investigações, o caso ainda estão não está concluído – nem se sabe quando estará.

Canas esteve preso preventivamente durante mais de 7 meses, entre maio e dezembro de 2013, enquanto que Canals e o seu sócio Nicholas Figueiredo ficaram presos preventivamente cerca de 5 meses.

Já o caso Furacão, que também investigou crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais que derivavam de produtos de planeamento fiscal vendidos nos private banking do BES, BCP e BPN, iniciou-se em 2005 e teve as últimas acusações em outubro e novembro de 2015. Mais de 10 anos de investigações que serviram essencialmente para cobrar impostos em falta num montante total que terá superados os 100 milhões de euros.

Finalmente, o caso dos Submarinos – um dos processos mais mediáticos dos últimos anos mas que reflete uma imagem popular: uma montanha que pariu um rato. Iniciou-se em 2005 mas só teve os primeiros arguidos (três da ESCOM, do Grupo Espírito Santo, como Hélder Bataglia, Luís Horta e Costa e Pedro Neto) perto do final da investigação, à beira da prescrição. Foi arquivado em dezembro de 2014.

Última nota: os administradores da ESCOM estão novamente envolvidos na Operação Marquês.