Título: O Livro Aberto – Leituras da Bíblia
Autor: Frederico Lourenço
Editora: Cotovia
Páginas: 152
Preço: 16€

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O mundo das letras tem um tipo de exigência quase esquizofrénico em relação aos livros. Se um escritor ambicioso tenta encapotar as suas falhas, os críticos procuram-nas; se, no entanto, facilita a vida ao crítico e se apresenta a exame com as respostas em branco bem à vista, o juiz faz pouco caso delas. Se o autor aspira a um estudo definitivo, que se esquadrinhem as margens à cata do erro, se fuce a mancha impressa do primeiro borrão ao último pigmento, se escarafunchem as resmas impenetráveis de papel até se encontrar uma gralha, e que até os rodapés sejam sujeitos a vistorias com pruridos de polícia desconfiado.

Por outro lado, se o escritor alardeia as suas insuficiências, se exibe despudorado o material suspeito logo na capa ou na introdução, a zelosa alfândega relaxa de imediato. A declaração de intenções não provoca apenas condescendência – não se trata de uma compassiva abébia perante a sinceridade do escritor; a declaração antecipada das limitações de um trabalho é, mesmo nos casos mais descarados, o antídoto mais habilitado para passar incólume pela venenosa crítica intelectual, em nome do direito de cada um escolher os métodos e os limites dos seus estudos. Tal como não é por avisar com antecedência que pôr uma bomba num centro comercial deixa de ser censurável, não é por, ao escrever uma gramática de inglês, se avisar que não se sabe tal língua, que este ponto se furta à discussão do que se deveria ter feito. Aquilo que Hannah Arendt explicava num ensaio sobre a autoridade – que a convenção tácita de que cada académico tem direito a escolher o seu vocabulário deve ser olhada com desconfiança – também se aplica a métodos e projectos intelectuais.

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A assunção declarada de um método de análise parece, normalmente, puxá-la para longe da discussão. Ora, este é, logo à partida, um dos pontos em que mais relevante nos parece não fechar o debate acerca do Livro Aberto, de Frederico Lourenço. O eminente filólogo explica que tratará a Bíblia racionalmente, como a qualquer texto filosófico, livre portanto de um ponto de vista religioso, judaico ou cristão. E parece-nos importante discutir o método porque este vai interferir directamente com a tese principal: a tese de que a Bíblia foi escrita por cada um dos seus autores para ser lida à letra e que, por isso, está enrodilhada num nó de contradições que as interpretações alegóricas tentam desfazer.

Dá exemplo disto mesmo logo ao tratar da profecia de Ezequiel: à maneira de Schopenhauer, não exclui que o profeta tenha realmente visto um pórtico. A formulação erudita do dichote “nem tudo o que parece é” admite a possibilidade de Ezequiel ter visto algo que não corresponde a uma realidade objectiva. O que Lourenço enjeita é a interpretação clerical de que Ezequiel estivesse a ver a mãe de Deus e, simbolicamente, lhe chamasse pórtico.

Ezequiel

Ezequiel representado na Capela Sistina

Ora, este exemplo é apanágio dos problemas do método racional de Lourenço. Ler a Bíblia de um modo crente não implica acreditar que Ezequiel viu Nossa Senhora e, num arroubo de lirismo, decidiu chamar-lhe pórtico; implica acreditar que o dono da palavra é Deus e, por isso, nem Ezequiel tem poder sobre o significado das suas profecias. Isto é, a leitura crente, embora desde os tempos de antanho apontada como mais ingénua, mais crédula, mais supersticiosa, suspeita muito mais da mão humana do que qualquer outra leitura. Não é uma sonolência milenar que justifica as sotainas ainda não terem destapado as contradições de proporção bíblica que existem entre o Antigo e o Novo Testamento, nem uma meticulosa preocupação com as suas próprias tonsuras que impede os padres de descobrirem algumas carecas na Bíblia; ler de um modo crente a Bíblia implica reconhecer que o Homem, mesmo aquele que escreveu, não tem poder para distinguir sempre a voz de Deus da cacofonia humana.

E isto importa, mesmo para quem não é crente, porque esta é a única maneira de ler a Bíblia. De outra forma, podemos ler o Êxodo, os dois livros dos Reis ou qualquer outro livro em separado, unificados apenas por uma manobra do acaso ou um simples critério de economia de lombadas. Lemos livros diferentes, agregados como qualquer selecta do Reader’s Digest; o que Frederico Lourenço faz – como de resto vários leitores “racionais” da Bíblia, dos enciclopedistas a Renan ou Loisy – é lê-los como documentos humanos e exigir que falem como deuses: dizer “isto foi escrito por um homem” e exigir que Deus fale da maneira como nunca nenhum crente disse que Ele falava – através de um livro em particular e não daquilo que prevalece da leitura da Bíblia como um todo.

Ler a Bíblia sem ter em conta precedências e sentidos evolutivos – como, aliás, é feito com qualquer corpus filosófico – provoca a quase irresistível tentação de enlear a leitura num exercício espúrio à cata de contradições e bizarrias que nunca sairiam da boca de Deus. E lê-la com este sentido não implica, ao contrário do que o autor parece insinuar, que os profetas viram aquilo que não disseram. Implica, apenas, a consciência de que os autores não decidiram ser Bíblia, mas ainda assim ela existe porque os séculos lhe foram reconhecendo uma coerência interna. O que não se pode é dispensar um método, escolher um novo, e exigir os resultados do primeiro: procurar na Bíblia o que é humano terá como resultado encontrar o humano e não o divino.

Parecerá desadequado este tom, quase catequético, para mais diante de um dos nossos mais doutos e cuidadosos professores. Mas Frederico Lourenço, neste livro, pendurou a beca académica e ajaezou-se à desportiva: o tom é mais próximo, coloquial, do que nos seus livros de ensaios. E embora esta versão descontraída consiga ter interesse e juntar curiosidades com graça, bastava tirar as vestes talares. Não era preciso despir-se a ponto de nos trazer revelações sobre o seu prepúcio e o prazer sexual que a falta dele lhe provoca…

Há, certamente, a par de algum excesso de proximidade, vantagens neste tom mais desinibido. O autor conseguirá chegar a muita gente e, como professor experimentado que é, vai passando informação sem que se dê pelo relógio a passar também. Mas, para quem está habituado aos seus estudos homéricos sobre cultura grega e alemã, às análises argutas e às investigações meticulosas, é inevitável uma certa desilusão. Este livro mais parece uma nota rápida de leitura do que um estudo sério; dá-nos uma sucessão de episódios engraçados mas que não trazem uma verdadeira imagem da Bíblia.

Para quem nunca leu a Bíblia, talvez este seja um bom incentivo. O tom é de conversa, sem debuxar o rumo da escrita, sem matutar na ideia, nem varrer a casuística sobre os assuntos. Está eivado de pormenores de uma erudição deliciosa, a que se entaramelam considerações sobre a Igreja ou a exegese, como as diria um senador paternalista a ensinar a urbe de improviso.

Frederico Lourenço, embora não mostre algumas das qualidades que a sua bibliografia anterior já provou, revela algumas que não seriam ainda tão óbvias. As maiores serão com certeza a sua capacidade para manter o leitor atento e a forma como consegue transmitir uma profunda e encantadora paixão pela Bíblia. Escolhe bem episódios para captar a atenção, urde relações inesperadas (entre anjos e comida, por exemplo) e até dos livros mais difíceis – como o livro dos números, por exemplo – consegue extrair pormenores que tornam cativante a leitura de temas tradicionalmente mais pesados.

O livro, digamo-lo também, ganha com a passagem das páginas. O autor parece-nos mais à vontade com o Novo Testamento e transmite-o a quem lê. Logra na sempre difícil tarefa de dar ideia das diferenças estilísticas entre o grego e o português, usa a filologia da melhor das formas, aprofundando o sentido de algumas palavras e deslindando a diferença entre outras, e é mesmo mais convincente nas teses que vai ensaiando.

Um livro um pouco deslocado

Se fosse apenas uma espécie de sebenta, o livro ganharia. É na sua forma mais singela, quando vemos as roldanas do pensamento a trabalhar a nu, que o livro se torna mais interessante. Se o livro fosse uma espécie de bosquejo sobre o Deus que temos quando lemos a Bíblia apartados de toda a tradição, não só teriam a ganhar algumas das meditações mais bonitas – como a que faz o autor acerca da Sexta-feira Santa e da vontade de José de Arimateia enterrar Jesus – como ganharia o próprio modelo, enriquecido com o arcaboiço filológico do autor. O que causa estranheza é a tentativa de refutação de uma leitura instituída, mas apenas de raspão. Não basta afirmar, quase epigramaticamente, que há uma contradição irresolúvel entre o Velho e o Novo Testamento; o investigador tão contundente a explicar que os textos de Homero não podem ter sido todos escritos pelo mesmo homem não faz caso dos argumentos de Ratzinger, para usar apenas um dos exemplos mais básicos, a respeito das hipóteses de Jesus ter nascido em Belém (coisa que o autor nos diz ser muito improvável).

Não se está, com isto, a dizer que Frederico Lourenço não tem razão naquilo que diz – pouco nos importa isso para este texto. Pretendemos apenas explicar que, se quer refutar uma leitura sedimentada ao longo de séculos, precisa de raspar com mais força: afirmar que Isaías não pode ter profetizado tudo aquilo que profetizou por haver demasiada correspondência com acontecimentos posteriores não é, provavelmente, a melhor forma de argumentação, dado que é precisamente a correspondência que está em causa na profecia. Dá-se este exemplo por ser a antonomásia de um processo recorrente: Frederico Lourenço até pode ter razão, mas não se esforçou muito por mostrá-lo.

Pode ser que não fosse esse o propósito; que não houvesse móbil para este livro senão mostrar um amor cuidado e verdadeiro pela Bíblia; pode ser que este fosse apenas o livro da génesis de uma investigação mais profunda, ou que se tratasse apenas de um despertador para alguns leitores, necessitados do incentivo de um dos nossos grandes académicos para se lançarem à Bíblia.

Em todos estes casos, o livro é bem-sucedido. Mas, para os seguidores mais atentos da obra ensaística de Frederico Lourenço, talvez se aplique a este livro em relação à sua obra aquilo que ele taxou sobre o Cântico dos Cânticos em relação à Bíblia: por muito bom que seja, não deixa de estar um pouco deslocado entre os outros livros.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia e alfarrabista. Colabora no site Velho Critério