Qualquer medicamento ou tratamento, antes de entrar no mercado, tem de passar uma série de testes: ensaios pré-clínicos – com modelos animais -, ensaios clínicos para assegurar a segurança do procedimento – fase I -, avaliação da eficácia – fase II -, e confirmação dos resultados obtidos anteriormente – fase III e IV. Na passagem entre cada fase, a empresa farmacêutica é obrigada a apresentar resultados e a submeter-se a avaliação da agência reguladora. Com o recente caso sobre o ensaio clínico com uma molécula da empresa portuguesa Bial, os especialistas lembram que é um caso raro, mas a verdade é que os ensaios que não apresentam resultados interessantes para as empresas podem ficar na gaveta em vez de serem publicados.
Em 1997, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos norte-americano criou uma plataforma – clinicaltrials.gov – onde todos os médicos e patrocinadores (leia-se farmacêuticas que querem ver as suas moléculas testadas) tinham de registar os ensaios antes de começarem a recrutar doentes para eles. Dez anos depois, na tentativa de conseguir ainda mais transparência, todos os ensaios registados tinham de apresentar um resumo dos resultados obtidos no espaço de um ano. Existem multas e penalizações para quem não cumpra, mas em 2015 ainda não tinham começado a ser aplicadas, como refere um artigo publicado no The New England Journal of Medicine.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) também defende que os resultados de todos os ensaios clínicos estejam disponíveis ao fim de um ano, após a conclusão da experiência, numa plataforma equivalente à clinicaltrials.gov. E, idealmente, que os resultados de ensaios antigos também sejam publicados. Não revelar esses resultados, para que possam ser usados por outros investigadores, é um desperdício de tempo e dinheiro e atrasa os avanços na medicina, alerta a organização.
“Não apresentar publicamente os resultados dos ensaios clínicos gera desinformação, levando a prioridades enviesadas tanto para a investigação como para as intervenções de saúde pública”, disse, citada pela Science, Marie-Paule Kieny, assistente de direção na OMS. “Cria custos indiretos para as entidades públicas e privadas, incluindo para os próprios doentes, que pagam por tratamentos abaixo do ideal ou prejudiciais.”
Um dos primeiros passos significativos foi ter as revistas científicas mais importantes a rejeitar publicar resultados de ensaios clínicos que não tivessem sido registados na plataforma – isto para o caso dos ensaios que decorrem nos Estados Unidos e que são submetidos à agência norte-americana do medicamento (FDA). Mas as revistas científicas também falham quando, no seu escrutínio das publicações que vão aceitar, deixam de parte resultados inconclusivos ou negativos – aqueles que demonstram que algo não resultou ou que não teve o efeito esperado.
Em março de 2015, um artigo publicado na conceituada revista científica The New England Journal of Medicine concluiu que “há estudos que têm demonstrado que o cumprimento das normas da FDAAA [regulamentação da agência norte-americana para o medicamentos] é, regra geral, fraco, apesar de um consenso crescente a favor dos relatórios públicos e transparentes sobre testes em humanos”.
Apesar de terem um acesso limitado aos dados e de terem tido de socorrer-se de algoritmos para a análise que fizeram, a equipa de Monique Anderson, investigadora no Instituto Duke de Investigação Clínica (Reino Unido), concluiu que as empresas farmacêuticas são mais disciplinadas na apresentação dos resultados do que os ensaios financiados pelo governo, instituições académicas ou Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos (NIH).
O receio é que as farmacêuticas escolham publicar apenas os resultados positivos dos seus estudos. Se os resultados não forem positivos o regulador pode não permitir a molécula ou tratamento avance nos ensaios clínicos, mas sem uma publicação dos dados em bruto, a empresa farmacêutica pode estar apenas a apresentar os resultados positivos, ocultando os negativos.
Além disso, os investigadores verificaram que, entre 2008 e 2012, eram os ensaios clínicos de fase I que mais falhavam na apresentação de resultados. Ou seja, são os voluntários saudáveis – cuja saúde não beneficia diretamente destes ensaios – que estão em perigo porque os riscos dos ensaios anteriores não foram publicados.
Por outro lado, uma das características que se exige a investigação bem conduzida é que os resultados sejam reproduzíveis, ou seja, caso outra equipa deseje repetir toda a experiência, os resultados não serão significativamente diferentes dos primeiros. Mas, conforme um artigo publicado este mês pela revista Plos One, os ensaios não são reproduzíveis – pelo menos com base no artigo científico – porque estão em falta elementos importantes, como o protocolo da experiência ou até alguns dos resultados iniciais.
“Há um movimento crescente na comunidade científica para encorajar a reprodutibilidade e transparência das práticas, incluindo o acesso público aos dados em bruto e protocolos, realização de estudos de replicação, a integração sistemática de revisões e documentação sobre o financiamento e potenciais conflitos de interesse”, referem os autores do artigo.
A equipa de John Ioannidis, investigador no departamento de Estatística da Universidade de Stanford (Estados Unidos), verificou que nos 441 ensaios clínicos que analisaram, publicados entre 2000 e 2014, apenas um apresentava o protocolo (método experimental usado) completo e nenhum apresentava dados em bruto (antes da “limpeza” e tratamento estatístico). Mais, apenas quatro apresentavam trabalhos de replicação, 16 tinham apresentado revisão sistemática de outros estudos e a maioria não apresentava declarações de interesse ou de financiamento. “[Além disso,] os artigos publicados em revistas científicas na área da medicina clínica, em comparação com outras áreas, têm duas vezes menos probabilidade de incluírem informação sobre financiamento e de este financiamento ser privado.”
Ainda assim, o médico e cético Ben Goldacre defende que publicar nas revistas científicas não é suficiente – as revistas só aceitam aquilo que querem, os artigos não estão isentos de erros e omissões e demora demasiado tempo a ver um artigo publicado. Para ultrapassar esta limitação, Ben Goldacre defende a utilização de plataformas como a clinicaltrials.gov, onde a informação pode ser inserida obedecendo a um formulário padronizado, simplificando o processo. Para o médico é também importante que sejam conduzidas auditorias independentes a todos os ensaios que levem mais do que 12 meses a tornar os resultados públicos.
Ben Goldacre faz parte da iniciativa internacional All Trials Registered, criada em 2013, que defende que todos os ensaios clínicos presentes e passados sejam tornados públicos. O movimento afirma que metade dos resultados dos ensaios clínicos permanece hoje em dia por divulgar: a omissão dos resultados menos positivos “não é coisa do passado” e não é exclusiva da indústria farmacêutica. “[E não,] os reguladores não vêm necessariamente tudo.”