Há uma história que toda a gente conhece e que usa para o descrever. É a que conta como um dia ele se levantou da cama, tomou banho, vestiu o fato e a gravata para ir trabalhar e, horas depois, estava no Estádio da Luz a ver um centralão saltar alto para, aos 83’, cabecear a bola que deu no golo que lhe tirou um campeonato. É a mesma que relata como, 96 horas depois, ele estava no Estádio de Alvalade a ver a sua equipa desmoronar-se e perder uma final na própria casa. A história durou quatro dias, mas rara é a pessoa que não lhe pegue para colar a primeira parte de um rótulo nos 24 anos que ele leva como treinador.

O ele desta história é José Peseiro. Já lá vão mais de dez anos desde que o desalento lhe encheu as rechonchudas bochechas da cara, quando o Sporting em que dava ordens acabou uma a época aos trambolhões. Após os russos lhe roubaram a Taça UEFA, quatro dias passaram até que, de novo em casa, uma outra derrota na última jornada da liga lhe roubou a percentagem de probabilidade que a matemática ainda lhe dava de chegar ao título. O que podia ter sido uma maravilha acabou por ser “um desastre” que ninguém esqueceu. E o primeiro a reconhecê-lo é mesmo ele: “Assumo isto sem problema nenhum. Sinto que não estava preparado para aquilo que aconteceu”.

LISBON, PORTUGAL - MAY 18: Jose Peseiro, coach of Sporting Lisbon, gives instructions during the UEFA Cup Final between CSKA Moscow and Sporting Lisbon at the Jose Alvalade Stadium May 18, 2005. Lisbon, Portugal. (Photo by Clive Mason/Getty Images)

Foto: Clive Mason/Getty Images

José ficou abalado. Sentira o cheiro da glória, farejara-o bem de perto, mas as derrotas entupiram-lhe o nariz e roubaram o paladar para provar conquistar. Ele e a equipa fechavam a época sem darem nada do que tanto prometeram — “venho para o Sporting para ganhar tudo” –, mas, mesmo assim, o treinador ficou. Sentia que a mensagem ainda passava, que o que dizia entrava na cabeça dos jogadores e não saía. Enganou-se: em outubro, já poucos jogadores eram esponjas e não ficavam com nada do que lhes falava. “Eu não fui despedido do Sporting, fui eu que me quis ir embora porque senti que a minha mensagem não passava mais. Cheguei à conclusão, foi o primeiro momento em que me aconteceu isso e foi por minha iniciativa, que não conseguia combater as forças todas, era a claque, era o clube que não tinha união”, admitia, em julho do ano passado, a um blogue de futebol.

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Chegava a segunda parte do rótulo que se colou à testa de José Peseiro.

E nele lia-se que estava ali um homem que punha as equipas a jogar bem à bola, viciadas em atacar embora descuidadas a defender e que, por isso, não ganhavam títulos. No meio das derrotas e não-conquistas, havia jogadores a serem punidos, castigados com jogos no banco (Anderson Polga) ou a insultá-lo por o treinador os tirar de campo (Fábio Rochemback). O que para Peseiro era sinal de um treinador que, por dentro, mantinha a equipa na linha com punho cerrado, cá fora era prova de que ele não tinha mão nos futebolistas. “Levantaram-se questões da liderança, uma aberração completa. Até acho que sou um treinador intransigente, em termos de regras básicas. No Sporting, o rótulo que colocaram sobre a minha liderança foi do mais mentiroso possível, mas passou”, lamentou, mais tarde.

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Quis exilar-se, passar uns anos fora. Foi para a Arábia Saudita (Al Hilal), saltou para a Grécia (Panathinaikos), andou uns tempos quieto na Roménia (Rapid Bucareste) e passou aterrou depois na seleção saudita. Pelo meio ia parando. Visitava os clubes onde treinadores portugueses mandavam, ia espreitar os treinos, assistia aos jogos na bancada, como um adepto.

Foi-se inspirar e deixar ser inspirado. Esteve sete anos fora, os que achou necessários para saber lidar com a noção que o envolveram. “Não é por acaso que saí do país para trabalhar. Senti que, por minha culpa ou não, acabei por passar uma imagem que não é verdadeira. Senti-me com menos força com os rótulos que me colocaram”, confessou. Assim que a ganhou regressou, para treinar o Braga, ficar no quarto lugar do campeonato e conquistar a Taça da Liga. Aos 52 anos ganha o primeiro título a sério, mas os números mostram o que já tinham revelado no Sporting — a equipa de Peseiro marca bastantes golos e também os sofre com fartura. Em 2004/05, nos leões, acaba o campeonato com 46 encaixados, registo que, comparando com a última edição da liga (2014/15) lhe daria apenas a sétima melhor defesa.

Se há razão para que tantas bolas entrem na baliza das equipas de José Peseiro, ela está nas rédeas que solta dos jogadores, no relvado. É um treinador que diz e em vez de mandar. Que aponta o caminho das coisas em vez de conduzir a maneira como elas são feitas. “Se quiseres um jogo mais ofensivo com certeza que terás um modelo de liderança mais democrático, em que o jogador é mais visto, mais ouvido, mais participativo na liderança. Não é que decida, mas há quem queira dar as ferramentas aos jogadores para eles as usarem”, explicou ao Marcas de Futebol, o mesmo blogue. E quer que eles as usem o melhor possível, colocando a equipa a jeito para que todos tenham ideias a atacar e que entre eles haja um meio-termo que seja o golo. Mas isto é arriscado.

MANCHESTER, ENGLAND - OCTOBER 23: Head Coach of SC Braga Jose Peseiro stops the ball during the UEFA Champions League Group H match between Manchester United and SC Braga at Old Trafford on October 23, 2012 in Manchester, England. (Photo by Richard Heathcote/Getty Images)

Foto: Richard Heathcote/Getty Images

Porque quando se deseja o melhor é preciso arriscar com bola e isto aumenta o risco de se sofrer quando a equipa a perde. “Reconheço que a minha forma de jogo permite que os jogadores expressem o melhor e o pior. Quando lhes dás liberdade de mostrarem o melhor, também há a hipótese de mostrarem o pior. Se os tens castrados eles só fazem aquilo que queres”, disse, ao explicar a coisa que vai dar a uma outra: “Quando abres a tua liderança para eles terem opinião, os próprios comentam. Pensei que era melhor assim, mas lutei contra um paradigma. Em vez de ser aceite como uma pessoa que quer os jogadores a participar, passava a ser aquele que permitia que os jogadores tivessem opinião. Daí os rótulos”.

“O primeiro desafio de um treinador é dar a entender aos jogadores que são 25 pessoas diferentes. Se um precisa de um beijo o outro precisa de um grito, se um precisa de um castigo o outro não, porque está nos limites, porque se faz algo errado não é porque lhe apeteça mas porque não tem outra possibilidade. Esse é o grande desafio de um treinador. O jogador tem de ser ouvido. Eu gosto de fazer sempre uma primeira reunião para saber tudo sobre o jogador e a partir daí crio objectivos individuais”.

Não apenas o de José Peseiro inventar equipas que joguem bem embora nada conquistem, mas também o que o dá como um treinador amigo do azar. Ele apareceu quando Luisão, quase no final do dérbi da Luz, chegou mais alto com a cabeça do que Ricardo com as mãos e lhe deu a derrota que lhe tirou o campeonato, na penúltima jornada. E voltou a dizer olá em 2010, assim que o Bahrein marcou um golo à Arábia Saudita nos minutos de desconto do playoff para o Mundial da África do Sul. “Os meus amigos dizem que eu tenho azar, mas eu acho que sou um treinador com sorte. Comecei na terceira divisão e estou onde estou, sem ter um passado como jogador”, explicou, na altura. Acha-se um sortudo, como já se considerava quando ainda estava por Coruche, onde nasceu e “saía de casa, via os jogos todos [do Coruchense], ia a casa almoçar e voltava para ver tudo o resto”.

Agora tem a sorte de voltar a um grande em Portugal, um que tem o que o Sporting do seu tempo não tinha — uma estrutura montada há anos, que já ganhou muita coisa, quer voltar a ganhar e fará a máquina funcionar atrás do treinador. À frente terá uma equipa cheia de jogadores dos bons, melhores do que teve em qualquer equipa por cá, mas com vários em momentos de forma assim-assim. Pedem-lhe títulos e deram-lhe um contrato de ano e meio (esta e a próxima temporada) para os entregar. Não tem nada a perder, porque os rótulos já lhe colaram há muito, e tudo a ganhar, pois vai ter uma hipótese de os descolar.