O chapéu é a “social-democracia, sempre!” e o fato que Pedro Passos Coelho vai vestir é o da alternativa responsável e moderada em contraponto com o “radicalismo” do PS que, como se sabe, se juntou à esquerda para governar. É assim que esta quinta-feira à noite o ex-primeiro-ministro se vai apresentar ao partido e ao país no anúncio da recandidatura para mais dois anos (pelo menos) à frente do PSD. Sem oposição interna que se veja, a corrida até ao congresso de abril será literalmente um passeio pelo país a convencer o eleitorado de que, agora sim, vem aí a social-democracia depois de cinco anos de austeridade. E isto tudo enquanto o Governo e o PS se batem pelo Orçamento do Estado no Parlamento e em Bruxelas.
Mas o que é afinal a social-democracia? António Barbosa de Melo sabe-o bem. Histórico militante do ainda PPD (Partido Popular Democrático), reza a história – confirmada ao Observador pelo próprio – que foi ele que recebeu das mãos de Francisco Sá Carneiro aquilo que seria o projeto das bases programáticas do partido e que o ‘rasgou’ ali mesmo dizendo que era demasiado liberal. Se fosse para ser assim, que não contassem com ele. ‘Tudo bem’, terá dito Sá Carneiro, ‘reescreve como achares melhor’. E assim terá nascido o programa social-democrata originário.
Sá Carneiro, de resto, todos concordam que é o líder partidário que mais espelha aquilo que se entende ser a social-democracia. Os que depois dele chegaram à São Caetano à Lapa foram puxando o partido ora mais para o centro ora mais para a direita, mas a bitola estava definida. “Todos dizem que se inspiram em Sá Carneiro mas é nas políticas e nos discursos que se vê quais são as bases ideológicas que têm”, comenta ao Observador Barbosa de Melo, que foi fundador do partido, deputado da Constituinte, conselheiro de Estado e presidente da Assembleia da República. Para o histórico social-democrata, se é certo que o partido não é estático e “não há soluções únicas” também é certo que ao longo do tempo tem havido “diferentes ondas” que fazem o PSD navegar algures entre a margem sócio-liberal e a margem social-democrata.
As primeiras “ondas” terão sido as mais próximas da social-democracia, porque depois “a maré foi subindo e vazando até ficar só rocha”, brinca Barbosa de Melo, referindo-se aos resquícios de social-democracia que diz terem sobrado desde os primórdios sá carneiristas – e até cavaquistas. A crítica é para a vaga liberal que diz ter varrido o espectro político nos últimos anos sob o lema TINA (“There is no alternative”). “‘Não há alternativa’ não é uma atitude social-democrata”, defende ao Observador com a mesma rigidez ideológica de quem afirma que “os direitos humanos são a cartilha fundamental da social-democracia” e “uma política que não se rege pelos direitos fundamentais e a dignidade das pessoas não é uma política social-democrata”.
“Social-democracia, sempre!” ou “agora sim, a social-democracia”?
O slogan escolhido por Passos Coelho para a recondução na presidência do PSD é o primeiro – “Social-democracia, sempre!” -, mas, no limite, a mensagem que parece querer passar é a segunda: depois de as circunstâncias externas o terem impedido de se apresentar com um programa social-democrata, aí está a oportunidade ideal de se descolar do rótulo de neoliberal e de reposicionar o passismo na linha sá carneirista. Com o PS a braços com o Orçamento do Estado, que tem de negociar com pinças ora na frente externa, em Bruxelas, ora na frente interna, com os partidos da esquerda que são imprescindíveis na votação, Passos Coelho vai apresentar-se ao partido e ao país como “a alternativa moderada contra o radicalismo do PS”, sintetiza fonte próxima do candidato a líder.
“Criaremos uma oportunidade para mostrar que o PSD continua a ser um partido social-democrata com a capacidade de fazer, transformar o país, mobilizar os portugueses e oferecer do país uma visão ambiciosa que todos precisamos de concretizar”. É assim que o candidato Passos Coelho se apresenta no vídeo que divulgou nas redes sociais.
Já o tinha dito há dias ao Diário de Aveiro: “O PSD é claramente uma força que se coloca mais ao centro”, por oposição ao “PS que tem conhecido uma deriva radical”. E a ideia é vincar essas diferenças no cenário político, mas sem precisar de grandes mudanças ou invenções. “Não me vou reinventar, a situação do país é que mudou”, garantiu o próprio ao semanário Expresso esta semana. Que é como quem diz, ‘aquele programa não era o meu, as condições económicas e a perda de soberania é que não permitiram melhor’.
Nuno Manalvo, autor de uma tese de mestrado sobre “A marca dos líderes” sociais-democratas, não tem dúvidas em afirmar, num exercício feito ao Observador de posicionamento dos vários líderes no espectro ideológico, que o que teve o programa mais liberal foi Passos Coelho. Por oposição, Carlos da Mota Pinto terá sido, na sua opinião, o que “puxou mais o partido no sentido da social-democracia” – mais ainda do que Sá Carneiro. Mas a verdade, defende, é que, mais do que fruto dos seus princípios, um político é “fruto das circunstâncias”. E o passismo, na sua opinião, terá sido fruto (para não dizer vítima) disso mesmo. “Cavaco Silva foi verdadeiramente o único líder do PSD que pôde aplicar o seu programa político sem constrangimentos externos”, tendo sido fruto do “momento favorável de desenvolvimento económico” de que a Europa, e também Portugal, gozavam entre a década de 80 e 90.
“Sem se divorciar da base social-democrata, Cavaco foi do ponto de vista económico mais liberal do que outros líderes. Mas fruto do momento favorável de desenvolvimento económico foi aquele que melhor pôde aplicar a máxima de ‘menos Estado e melhor Estado'”, afirma.
Quando apareceu aos olhos do PSD como líder da Juventude Social-Democrata, Pedro Passos Coelho era até mais próximo da corrente de Fernando Nogueira (pós-cavaquismo) e não era visto como liberal, uma perspetiva que depois mudou quando, já na qualidade de líder do PSD, apareceu com, por exemplo, a proposta de privatização da Caixa Geral de Depósitos. E que se acentuou nos últimos quatro anos de governação, acabando por ser a principal arma de arremesso da oposição, que o acusa de ter esquecido a social-democracia em prol da vertente liberal, numa guinada à direita.
Certo é que historicamente, segundo explica Manalvo, o PPD/PSD, ao contrário dos partidos socialistas, comunistas ou democratas-cristãos, que têm raízes ideológicas muito demarcadas internacionalmente, é o mais “catch-all party” de toda a moldura política. Isto é, é aquele que tem maior “pragmatismo” ideológico e menor rigidez, absorvendo vários contributos e dando azo à frequente “ondulação” que Barbosa de Melo aponta. Ora mais para a direita, ora mais para o centro. Ora mais para a “esquerda da direita”, como diria o agora Presidente da República eleito, Marcelo Rebelo de Sousa.
A “indefinição”, de resto, acompanha a história desde o pós-25 de abril. Célebre é o episódio, recordado por Manalvo ao Observador, de uma troca de argumentos entre Sá Carneiro e Mário Soares no Parlamento, onde o primeiro (líder do ainda PPD) dizia que queria ocupar o espaço da social-democracia. Mas o fundador do PS ter-se-á insurgido: ‘esse lugar ocupo eu’. As fronteiras são ténues e, segundo defende Barbosa se Melo, cabe aos vários líderes escolher que onda querem surfar. “O PSD tem sido sempre social-democrata excepto quando a social-democracia desaparece da cabeça do líder”, ironiza. Daí a importância do ‘ismo’: do cavaquismo ao passismo.
Sem falar em “recentrar”, porque isso significaria admitir que houve um desvio à direita, o mote de Passos Coelho é agora lembrar que, enquanto o PS está fixado à esquerda, o PSD está ao centro. E é ao centro que, como se ouve dizer nos corredores sociais-democratas, se fazem consensos, assim como é ao centro que se ganham votos.
A formalização da candidatura é esta quinta-feira à noite, seguindo-se depois um mês de intensa campanha, num périplo pelo país onde o ex-primeiro-ministro deverá procurar lançar as sementes da social-democracia, defendendo o combate às desigualdades sociais, a valorização dos jovens e a proteção dos mais idosos (tal como fez na reta final da campanha das legislativas). Uma campanha interna pelas estruturas distritais do partido, cujo fim é uma eleição para já garantida, e que, por isso, se quer mais para fora do que para dentro. Para “limpar a imagem” de liberal e austero que colheu durante a governação, mas mantendo a postura de moderação, responsabilidade e espírito reformista. “A imagem dele é essa, é assim que ele é, não há qualquer intenção de mudar isso”, ouve-se dizer entre os corredores sociais-democratas.
No final de fevereiro, depois de recolher os contributos da sociedade civil, Passos terá nas mãos a sua moção de orientação estratégica onde definirá o rumo que quer para o partido; dia 5 de março são as eleições diretas e no primeiro dia de abril começa o congresso que o confirmará como líder do PSD por mais, pelo menos, dois anos. Tudo igual, portanto. Depois, continua a campanha rumo às eleições – antecipadas ou não, isso está nas mãos de António Costa e da sua capacidade de sustentar o Governo apoiado pelo PCP, BE e PEV. Caso a aliança da esquerda dure toda a legislatura, então aí já não é certo que Passos Coelho se aguente firme sem oposição interna. Mas para já, o palco ainda é seu.