A maioria PSD/CDS tinha apenas um mês quando o Bloco de Esquerda fez discutir no Parlamento o primeiro dos 15 projetos sobre a renegociação da dívida que entrariam naquela legislatura. No momento da votação, BE e PCP levantaram-se a favor e também um deputado do PS que escapou ao olho da mesa da Assembleia da República. O socialista teve de pedir a palavra para corrigir a votação:

“Sr.ª Presidente, quero apenas informar que votei a favor do projeto de resolução que acabámos de votar”. Ficou registado. Quem? Pedro Nuno Santos, o atual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que faz a ponte com a esquerda que apoia o PS no Parlamento. Valeu de pouco, de todas as vezes que foi votada, a reestruturação da dívida chumbou 13 vezes.

Daquela vez, Pedro Nuno Santos furou a orientação da bancada parlamentar e votou com a esquerda à esquerda do PS, havia mais deputados dissidentes, mas ficaram-se pela declaração de voto: Pedro Delgado Alves e Duarte Cordeiro (que foi diretor de campanha de António Costa). O tema era polémico qb., ao exigirem romper com as metas europeias e renegociar prazos, montantes e juros, BE e PCP afirmavam o seu espaço à esquerda, não só colando o PS à direita, como expondo o partido à quezília interna. Tanto assim era que até o PS avançar com um projeto próprio sobre a renegociação da dívida (ainda que sem compromisso além do debate), BE e PCP apresentaram 14 iniciativas legislativas sobre o tema num período de três anos (de 2011 a 2014).

Socialistas não foram além do debate

O 15º projeto pertence ao PS que, em outubro de 2014, foi forçado a avançar. Meses antes tinha aparecido o Manifesto de 74, assinado por personalidades da esquerda a defenderem “o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida, a extensão de maturidades da dívida para 40 ou mais anos e a reestruturação, pelo menos, de dívida acima dos 60% do produto interno bruto (PIB), tendo na base a dívida oficial”. O plano onde assentava o manifesto tinha sido elaborado por Pedro Nuno Santos do PS e Francisco Louçã do BE (e também pelos economistas Ricardo Cabral e Eugénia Pires).

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O manifesto virou petição e chegou ao Parlamento, com o Bloco e PCP a voltarem à carga com projeto de resolução sobre o tema. O que era diferente agora para finalmente o PS avançar também com um projeto? É que a direção de António Costa contava com alguns dos signatários de um manifesto (caso de Ferro Rodrigues, que era líder parlamentar) que estava mais próximo dos comunistas e bloquistas, do que da posição mais contida do PS.

Os socialistas sempre rejeitaram chocar de frente com Bruxelas, onde o tema estava interdito. O então novo líder do PS acabou por ter de meter a mão num tema (foi mesmo a primeira iniciativa legislativa da sua era) em que não tinha previsto tocar tão cedo, mas também não quis ir além de sugerir, na forma de projeto de resolução, “desencadear um processo parlamentar de audição pública para avaliação do impacto da dívida pública e das soluções para o problema do endividamento”. O projeto foi aprovado, com o PS a votar a favor e todos os outros a absterem-se.

O PCP e o BE iam muito além disto e disseram-no por catorze vezes. Oito delas pela mão do PCP (a última, no ano passado, não chegou a ir a votos) e as outras seis, por iniciativa do Bloco. O que têm defendido (de acordo com os textos mais repetidos de cada um):

O que defende o PCP

  • A “renegociação urgente da dívida” começando por aferir a dimensão da mesma, em “articulação com o Banco de Portugal”, no prazo de 30 dias, e apresentar resultados no parlamento;
  • Renegociar “a dívida direta do Estado, em particular da correspondente ao empréstimo da troika resultante do memorando de 17 de maio de 2011, considerando uma redução dos montantes, não inferior a 50% do valor nominal, que em conjunto com a diminuição das taxas de juro e o alargamento dos prazos de pagamento assegure uma redução de pelo menos 75% dos seus encargos anuais através da indexação do serviço da dívida pago anualmente pelo Estado português tendo em conta o valor das exportações;
  • Admitir a “suspensão do pagamento da dívida direta do Estado, com vista à sua renegociação;
  • O governo deve salvaguardar as condições com “pequenos aforradores, detentores de certificados de aforro e certificados do tesouro e com a dívida na posse da segurança social, do setor público administrativo e empresarial do Estado e dos setores cooperativo e mutualista”;
  • Revisão ou renegociação das garantias e avales financeiros concedidos pelas administrações públicas;

O que defende o BE

  • Um “processo eficaz de reestruturação da dívida” que passe pelo baixamento significativo da taxa media de juro do stock da dívida;
  • Extensão de maturidades da dívida para quarenta ou mais anos;
  • Reestrutura pelo menos a dívida acima dos 60% do PIB
  • No último projeto que apresentaram no Parlamento, quando foi debatida a petição vinda do Manifesto dos 74, os bloquistas ficavam-se por exigir que se iniciasse “um processo de auditoria à dívida pública, respeitando as seguintes condições”.

Maioria de esquerda em confronto

O tema volta agora, num quadro parlamentar totalmente diferente. Na edição desta semana do jornal oficial “Avante”, os comunistas insistem que “uma resposta real e coerente às questões do progresso social e económico, com justiça social e desenvolvimento soberano, implica uma rutura com os constrangimentos e limitações impostas pelo processo de integração capitalista europeu, em particular, com a União Económica e Monetária”, recolocando a renegociação da dívida também como necessária.

O PS continua a admitir apenas o debate e foi apenas isso que admitiu no documento da “posição conjunta” firmado com o BE. O PCP vai forçar a que seja tomada uma posição, que a direita anseia que se mantenha contraditória entre a maioria parlamentar de esquerda.

Haverá todos estes episódios da anterior legislatura para recordar no regresso deste debate, incluindo aquele em que um deputado do PS estava numa sessão de militantes em Castelo de Paiva e atirou, sem saber que havia comunicação social regional na sala: “Nós temos uma bomba atómica que podemos usar na cara dos alemães e dos franceses, e essa bomba atómica é simplesmente: não pagamos! Ou os senhores se põem finos ou nós não pagamos!” Quem? O atual secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que faz a ponte com a esquerda que apoia o PS no Parlamento. Que muito provavelmente representará o Governo nesse debate.