Um processo-crime é como um puzzle: só podemos ter uma visão global depois de encaixarmos todas as peças. A Operação Marquês, mais do que nunca, é o melhor exemplo dessa máxima. E o circuito do dinheiro que foi parar às contas de Carlos Santo Silva na Suíça — e que o Ministério Público acredita que se destinavam a pagar ‘luvas’ a José Sócrates como contrapartida por vários contratos ou decisões – é a melhor prova de como ainda não se conhecem todas as peças do puzzle. Os Panama Papers divulgados esta sexta-feira pelo Expresso e pela TVI confirmam as suspeitas da investigação
Uma peça foi acrescentada recentemente com a emissão de uma carta rogatória para Hélder Bataglia ser interrogado em Angola: a origem dos 12,5 milhões de euros que o empresário luso-angolano transferiu para as contas de Carlos Santos Silva na Suíça através de duas offshores (a Markwell e a Monkway) como alegada contrapartida pela aprovação da nova fase de desenvolvimento do empreendimento imobiliário de Vale do Lobo, no Algarve, terão tido origem nas contas da ES Enterprises, offshore do Grupo Espírito Santo com sede no Panamá.
Esse facto leva o Ministério Público a pensar que o GES liderado por Ricardo Salgado estará relacionado com o pagamento dessas contrapartidas a José Sócrates.
Em declarações ao Expresso deste sábado, Helder Bataglia confirma que as “transferências foram feitas a partir da ES Enterprises” — uma frase que deverá repetir na resposta à carta rogatória que já está em Angola
As contas de Santos Silva, Barroca e Bataglia na Suíça
Para percebermos melhor a relevância destas informações, temos que recordar informação que o Observador já noticiou, pois só assim compreendemos melhor as peças deste puzzle.
O procurador Rosário Teixeira não tem dúvidas que se verificaram transferências de cerca de 17,5 milhões de euros para as contas de Carlos Santos Silva na Union des Banques Suisses (UBS), sendo que existe um outro arguido que tem um papel fundamental na forma como Santos Silva recebeu os fundos: Joaquim Barroca, administrador executivo do Grupo Lena, que se ofereceu, segundo o MP, para disponibilizar as suas contas na Suíça para a passagem de dinheiro que se destinava a José Sócrates.
O total das transferências realizadas entre 2007 e 2009 para e a partir de três contas abertas por Barroca na UBS alcançou cerca de 15 milhões de euros, tendo as mesmas sido, alegadamente, movimentadas por Carlos Santos Silva, o empresário amigo de Sócrates. Barroca admitiu mesmo no seu primeiro interrogatório, enquanto arguido, que assinou ordens de transferência em branco para Santos Silva.
O administrador executivo do Grupo Lena é suspeito dos crimes de corrupção ativa e de branqueamento de capitais enquanto gestor e, a título pessoal, por fraude fiscal qualificada.
Os extratos bancários de Joaquim Barroca na posse dos investigadores da Operação Marquês não oferecem dúvidas para o MP: verificaram-se dois grupos de transferências em duas fases e por razões diferentes.
- O primeiro grupo de transferências está relacionado com fundos que têm origem no próprio Grupo Lena, nomeadamente em contas da Construtora do Lena, SGPS, da qual Barroca era administrador. E que acabam por ir parar às contas de Carlos Santos Silva, tendo como destinatário final, segundo o MP, José Sócrates. Na ótica da investigação, esta é uma prova relevante que consubstanciará o pagamento de contrapartidas ao ex-primeiro-ministro como contrapartida pela adjudicação de diversas obras ao Grupo Lena. No total, e segundo o MP, Carlos Santos Silva recebeu um total de cerca de três milhões de euros que tiveram origem em contas bancárias do Grupo Lena.
Carlos Santos Silva, após receber as quantias nas contas da Giffard, movimentou de imediato o dinheiro através de várias empresas offshore que controlava, e que também tinham contas abertas na Suíça, como a Belino Foundation e a Brickhurst International. O objetivo era, segundo o MP, camuflar a origem do dinheiro antes de o parquear numa conta igualmente em território helvético.
A origem do dinheiro de Bataglia na ES Enterprises
- O segundo grupo de transferências está relacionado com Hélder Bataglia e totalizou cerca de 12,5 milhões de euros. Mais uma vez, as contas de Joaquim Barroca foram um ponto de mera passagem com vista a chegarem a Carlos Santos Silva e, alegadamente, a José Sócrates. Entre abril de 2008 e maio de 2009, Hélder Bataglia, o luso-angolano líder da ESCOM e o ex-homem forte do Grupo Espírito Santo em África, foi o autor das transferências através de duas offshores que controlava (a Markwell e a Monkway). No final, chegaram às contas bancárias tituladas por Carlos Santos Silva. Mais uma vez, o MP não tem dúvidas de que os fundos se destinavam a José Sócrates.
O que agora se descobriu, e o próprio Hélder Bataglia admitiu em declarações ao Expresso, é que estes fundos transferidos para as contas de Carlos Santos Silva, tiveram origem em contas bancárias da ES Enterprises — offshore do GES que não tinha existência no organograma oficial e não era conhecido pelas autoridades de supervisão portuguesas. O MP suspeita que serviu para pagar ‘luvas’ a um conjunto diverso e alargado de responsáveis políticos e empresariais.
Os investigadores começaram por acreditar que o objetivo desses fundos se prendia com a aprovação da expansão imobiliária do Vale do Lobo Resort, situado no Algarve. Resta saber se a descoberta da ES Enterprises nesta equação levará a uma reavaliação da prova recolhida.