Título: “Around the House”
Autor: Robert Adams
Edição: Fraenkel Gallery (São Francisco, 2016)

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Há um contraste flagrante, embora falso, entre toda a carreira fotográfica do norte-americano Robert Adams (n. 1937) e o seu livro Around the House (2016), acabado de publicar com a exposição epónima na Fraenkel Gallery em São Francisco. A inteligibilidade assim como falsidade desse contraste remonta há quarenta e poucos anos.

Por volta de 1975, William Jenkins, curador da George Eastman House, em Rochester, reparando na semelhança entre as séries fotográficas de Edward Ruscha e a fotografia de uma série de jovens fotógrafos, que não se conheciam entre si, notou que estes talvez formassem uma nova família na história da fotografia (ou, pelo menos, uma família tresmalhada: uma série de netos de Walker Evans, por assim dizer). Propôs-lhes uma exposição conjunta — que deu igualmente origem a um livro com o mesmo nome — intitulada New Topographics: Photographs of a Man-Altered Landscape. Robert Adams era um destes fotógrafos. A par de Lewis Baltz, Frank Golke, Nicholas Nixon, Stephen Shore, John Schott, Henry Wessel Jr, assim como dos fotógrafos alemães Bern e Hilla Becher.

A família fotográfica de Adams interessa-se pelo alcance conceptual da “straight photography”, ou para usar uma expressão famosa de Evans, pela “fotografia em estilo documental”, concentrando-se, de meados de 1960 em diante, nas alterações produzidas na paisagem pela suburbanização e pela indústria no território norte-americano: como descreve o subtítulo da exposição, pela paisagem alterada pelo homem. Não deixa de ser uma ironia que, focando a paisagem alterada, alterasse para sempre, este conjunto de fotógrafos — onde no entanto falta pelo menos John Gossage, seu contemporâneo (ainda que o livro The Pond date de 1985) — em graus e de modos todavia distintos no que respeita à influência de cada um, o panorama da fotografia enquanto arte.

A perda do Oeste

Aos 38 anos, não sendo propriamente um “jovem fotógrafo”, Adams abandonara de vez uma curta (para não dizer intolerável) carreira académica para se dedicar a tempo inteiro à fotografia, que abraçara amadoramente cerca de 1964. Entre 1968 e 1974, em parte com o apoio de uma (primeira) bolsa Guggenheim, realiza os seus dois primeiros trabalhos de relevo, The New West (1974) e Denver (1977). Desde logo, sem a menor ponta de ironia, mas antes, como escreveu Tod Papageorge, “carburado pela ira, e sustentado pela sua pureza”, o trabalho de Adams estuda a suburbanização do Oeste americano, em particular, em torno do Colorado, onde cresceu, reflectindo sobre a relação conturbada do país com a natureza — ou melhor, sobre a relação conturbada do capitalismo com a natureza, como ficamos a saber num ensaio incaracteristicamente amargo de 1986: “In the Twentieth-Century West” (Why People Photograph?, Aperture: 1994). Adams notabilizou-se, de então para cá, por uma série de trabalhos e escritos acerca de uma paisagem e arquitectura problemáticas, e ainda acerca da fotografia como instrumento de reflexão — e da vindicação de uma perda sem remédio. A natureza, a beleza, o sofrimento e o modo de vida do Oeste americano, são tópicos preponderantes do seu pensamento, numa obra extensa e singular, composta por livros de fotografia, exposições e vários volumes de ensaios. Adams viria a receber uma segunda bolsa Guggenheim, uma “genius grant” da MacArthur Foundation, o Deutsche Börse (2006) e o Hasselblad Award (2009). É possível consultar online uma grande retrospectiva da sua obra na Galeria de Arte da Universidade de Yale, assim como na página dedicada da Fraenkel Gallery, que o representa.

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Uma viragem para o interior

Por menos palavras, toda a sua carreira é dedicada a fotografar fora de portas. Ora — voltando atrás — em Around the House há somente imagens capturadas em sua casa ou em torno dela: são setenta e uma imagens a preto e branco de interiores, do seu jardim, e da casa e do céu vistos da perspectiva deste jardim. No episódio de 10 de Março de 2016 do Modern Art Notes Podcast, Adams corrobora a percepção de o livro ser estruturado ao longo de uma estação só (depreende-se da entrevista que o conjunto se refere a um Verão recente, numa cidade costeira do Oregon, onde actualmente reside), e pela passagem de um dia completo. As primeiras fotografias apresentam uma luz matinal, que, nas imagens de exteriores, gradualmente escurece, até anoitecer por completo, ciclo fechado por duas imagem da casa às escuras: ora de noite, iluminada por dentro, salientando uma interioridade redentora (a que terei de voltar); ora de luzes apagadas, contra um céu um tudo nada menos escuro, que uma mudança ténue da direcção da luz sugere ser de madrugada; — a que se segue uma coda de significado histórico e pessoal, que não deixa de ser um regresso ao princípio: a saber, uma última sequência de imagens de nuvens, contra o céu da manhã, evocando Alfred Stieglitz (uma das suas influências remotas), ou antes, amnistiando-o a respeito das célebres imagens de nuvens — cliché ou cedência que Adams sempre menosprezara publicamente. Seja como for, a conclusão do livro é a conclusão de um ciclo já antigo, inseparável da sua decisão (de uma audacidade rara) de mudar de vida para fotografar a perda do Oeste.

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No mesmo ensaio (“In the Twentieth-Century West”, 1986), escrito profeticamente ao longo de um retiro numa casa aparentemente a mesma de Around the House (situada numa colina sobre a foz do rio Columbia, numa pequena cidade de Oregon), Adams refere-se a um episódio fundamental da sua vida decorrido numa visita à Alemanha, episódio que abrevia todas as explicações necessárias a respeito deste último livro. Tendo algum tempo livre, confiou nas sugestões de certo guia turístico, que aconselhava visitas a igrejas desenhadas pelo arquitecto alemão Rudoph Schwarz. “Acerca de uma igreja, localizada num subúrbio [de Colónia] de resto desprovido de interesse, lia-se no guia que lembrava — uma vez que Schwarz conseguira misteriosamente permear a estrutura com uma luz natural que parecia não ter fonte — a definição de Igreja Ortodoxa Oriental: um edifício, análogo à mãe de Cristo, que contém o incontenível. Para meu espanto, era exactamente assim. Esta igreja, a igreja de São Cristóvão, em Colónia-Neil, era diferente de qualquer edifício religioso americano moderno que eu conhecesse. Ao fundo do santuário havia, sobre betão de resto limpo, um desenho o mais cru possível do Cristo ressuscitado; ao lado dos bancos, havia outro, igualmente simples, de um anjo cujo rosto estava virado para os devotos, com um dedo nos lábios pedindo silêncio.” — Esta é, a propósito, uma das imagens centrais de Around the House: a de uma pequena escultura de madeira (feita por Adams, e que aparece por duas vezes) inspirada neste desenho, a qual, antes de conhecer o ensaio em que a refere, tomei por uma extraordinária metonímia da atitude geral da sua fotografia: de certo modo, uma auto-definição. — “A minha memória da Alemanha”, continua Adams, “que no mais é a de uma geografia quase inteiramente perdida, sofre uma transformação através da lembrança das minhas visitas a meia dúzia de igrejas por este único homem. Lembrar-me delas ajudou a sugerir-se-me, ao regressar à América, que não apenas as igrejas, mas toda a paisagem urbana e suburbana poderia revelar-se sagrada se apenas lhe emprestássemos um pouco do olhar agraciado que Schwarz trouxera aos seus trabalhos religiosos. Foi, de certo modo, por isso que comecei a fotografar, para ver se era capaz de encontrar, através de imagens, um equivalente emocional ao daquelas igrejas” (171). Adams passou o resto da vida em busca deste “equivalente emocional”, como modo de reparar a perda do Oeste, e a perda de uma visão da América, ou, afinal, a perda da natureza.

A função da casa

Na mesma entrevista, interrogado a respeito da omnipresença de plantas em sua casa e em torno dela, Adams comenta que Around the House é em grande medida um livro acerca da natureza, tomada na sua possibilidade domesticada como um elemento protector. “Se os dois factos mais indiscutíveis da vida são o sofrimento e a beleza, uma casa deve, creio, ser imaginada e mantida de modo a mitigar uma e reforçar a outra” (cf. 13m32s), considera, acrescentando pouco depois, a respeito de uma sequência de fotografias de capuchinhos [chagas, nastúrcios] numa jarra que “os capuchinhos, dentro e fora de casa, são muitas vezes uma das principais defesas contra ficar a saber as últimas de Donald Trump” (cf. 14m50s). A par da natureza, mais do que mecanismos de defesa, e tudo menos que ornamental, surgem no livro livros e excertos de livros, e imagens de livros; pássaros e imagens de pássaros; versos e imagens de versos (alguns deles gravados nas paredes da casa, outros gravados em madeira, e em molduras, pelo próprio Adams, num mesmo cursivo); a arte, a oficina, as ferramentas, o estúdio, a sala escura, a leitura — elementos indiscerníveis de Adams, isto é, natureza de outro género: são artefactos de uma segunda natureza, indiscerníveis da sua busca fotográfica do costume; e, claro, Kerstin, sua mulher desde os tempos de faculdade, presente nalgum sentido em cada uma das suas obras. A posição relativa de cada imagem sugere, como sempre acontece nos livros de Adams, um estudo delicado do conjunto. O livro está arrumado exactamente como uma casa deve estar arrumada: nada fora do sítio.”Duration is nothing, association everything”, diz uma das inscrições fotografadas, comentando a arrumação da casa e a arrumação do livro, e a arrumação da vida.

Marcado pela perda de visão do fotógrafo, o que não deixa de explicar a distância dos objectos um pouco diferente do habitual (afortunadamente, não perdeu o olho com que fotografa), este é, sem dúvida, um livro de velhice. Mas apenas os apressados poderão imaginar um atenuamento de qualidades; e é provável que os mesmos se deixem enganar pelo contraste aparente entre estas imagens domésticas e as imagens da paisagem alterada. Adams descreveu uma vez as tribulações que atravessou para contornar a exigência da parte de editoras e galerias a respeito da necessidade prática de comentar as suas próprias fotografias, tendo recorrido uma série de estratagemas.

A melhor maneira de evitar falar das [tuas] fotografias é falar acerca dos seus assuntos — casas geminadas ou campos ou árvores ou seja qual for da miríade de detalhes interessantes da vida. Se tens de compensar o silêncio de uma fotografia, a maneira menos destrutiva parece ser falar acerca daquilo que estava em frente da câmara, em vez de falares acerca daquilo que te levou a fazê-la” (“Writing”, Why People Photograph, p. 35).

Nada nos impede porém de tomar a descrição da tentativa de encontrar em igrejas americanas um «equivalente emocional» ao do efeito produzido em si pelas igrejas de Schwarz (“em vários sentidos, um objectivo ingénuo”) como uma descrição perspícua da qualidade buscada no conjunto de fotografias publicado sob o título Around the House. “Penso por vezes que se elas existem nos Estados Unidos, serão pequenas, até mesmo anónimas por fora, concentrando-se para o interior, abrigando uma quietude separada da rua, mas que a redime” (itálico meu). Eis a melhor descrição disponível do objecto deste último livro. Não existe, entre esta e o resto das obras de Robert Adams, propriamente um contraste, senão num plano superficial. Existe, antes, uma solução — se é que existe uma solução