Falsificação de documentos, uso indevido de bolsas de investigação e acumulação de dinheiros públicos. Numa entrevista à revista Sábado, Rui Carvalho, ex-orientador de Tiago Brandão Rodrigues, acusa o agora ministro da Educação de ter cometido um “crime” quando era ainda um estudante de doutoramento em Coimbra. O ministro rebateu todas as acusações: em declarações à Sábado, classificou-as como “cegas” e “ofensivas”. Num comunicado enviado ontem, o ministro voltava a dizer que eram “totalmente falso” que tivesse cometido qualquer burla ou crime. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) também reagiu em comunicado, dizendo que não encontrou quaisquer indícios criminais. O caso é intricado.

Rui Carvalho contou detalhadamente à Sábado a sua versão dos acontecimentos, que remontam a 2001. Tudo começou com uma bolsa da PRODEP, aprovada nos idos de julho desse ano, para que Tiago Brandão Rodrigues pudesse realizar um estágio no Centro de Neurociências em Coimbra (CNC). Incentivado pelo professor, o estágio implicava que Tiago Brandão Rodrigues trabalhasse de julho a setembro de 2001. Em stand-by, continuava o pedido para uma bolsa de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Na mesma época, professor e aluno decidiram concorrer à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), “uma vez que o objetivo era que ele fosse para Dallas”, revela à Sábado Rui Carvalho. “O montante, creio que 450 contos foi atribuído. Em finais de julho, já com o financiamento da FLAD, fomos para Dallas. Eu acompanhei-o e passei o primeiro mês com ele. Depois regressei e ele continuou até ao fim de dezembro”, afirmou o professor na entrevista.

No entanto, o PRODEP contemplava apenas investigação em território nacional, pelo que, segundo a versão de Rui Carvalho, Brandão Rodrigues estava obrigado a abdicar da bolsa da FLAD assim que se mudou para Dallas. Segundo as acusações do professor, não o terá feito. Ter-se-á servido de um “malabarismo” alavancado num alegado esquema de falsificação de presenças em Portugal e alteração de datas.

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“Ele não esteve cá no [país] nesse período, estava comigo em Dallas, ao abrigo do subsídio da FLAD. E, no entanto, usufruiu da bolsa do PRODEP. Ora, isso é eticamente inaceitável”, reitera Rui Carvalho, ao mesmo tempo que garante que Brandão Rodrigues falsificou a folha de presenças para ludibriar os critério da PRODEP –– que exigia um registo de assiduidade.

No momento em que recebeu a luz verde da FCT, professor e aluno encontravam-se em Dallas. Rui Carvalho terá tentado então convencer Brandão Rodrigues a abdicar da bolsa da FLAD — longe de imaginar que, alegadamente, o estudante ainda usufruía da bolsa da PRODEP. “Então o senhor vai terminar a bolsa da FLAD (já nem imaginava que ainda estivesse a usufruir da do PRODEP), não vai acumular bolsas. Sei que pode ser um bocadinho curto financeiramente, mas eu deixo-lhe aqui um montante pessoal que depois, quando puder, me pagará”. O professor terá então feito um empréstimo a título pessoal a Tiago Brandão Rodrigues. Esta é pelo menos a garantia de Rui Carvalho.

Os dois acabariam por entrar em rutura em 2002. Foi nessa época que Rui Carvalho terá tentado, supostamente, desvincular-se de Brandão Rodrigues, e que descobriu a alegada fraude. Quando ligou para o departamento de bolsas com o objetivo de deixar de ser orientador do investigador, o professor diz que recebeu uma resposta surpreendente. “Assim que dei o nome do candidato à senhora do departamento de bolsas, nem precisei de lhe dar a referência da bolsa. A senhora disse-me: ‘Ó senhor doutor, é uma grande coincidência estar a ligar-me porque nos últimos seis meses andamos a tentar contactar esse aluno para lhe pedir o recibo do pagamento de propinas em Dallas e não conseguimos’”, conta Rui Carvalho à Sábado.

O professor explica-se assim na entrevista:

[Disse à senhora do departamento de bolsas] que devia haver um equívoco porque ele não pagava propinas em Dallas. Ele era aluno da Universidade de Coimbra. (…) Perguntei-lhe se não eram bench fees [os custos de bancada, pedidos quando o laboratório para onde o aluno vai exige contrapartida financeira], mas disse-me que se tratava de propinas. (…) Ele sabia que para pedir bench fees precisava da minha assinatura, [então] resolveu pedir subsídio para pagamento de propinas, uma vez que para isso bastava ele candidatar-se em nome pessoal. Eu não soube de nada. Ele fez o pedido quando estava em Dallas, supostamente para financiar o semestre em que ele lá esteve. Ora, ele só podia pedir propinas se se matriculasse como aluno de doutoramento”, relata Rui Carvalho.

Aqui entram os tais 18 mil euros: o ex-orientador de doutoramento do ministro da Educação acusa-o de se ter apropriado ilegalmente de quase 18 mil euros que lhe foram atribuídos pela FCT. Rui Carvalho garante ainda que denunciou a situação junto do presidente do departamento de Bioquímica e presidente do Conselho Diretivo, o professor Martinho do Rosário, que o acabou por aconselhar a “zipar o assunto Tiago Brandão”.

Sobre as motivações para denunciar publicamente o caso, Rui Carvalho afirma à Sábado: “O que Tiago Brandão Rodrigues fez foi cometer um crime. Chocou-me que alguém como ele fosse ministro da Nação. Não contesto as suas qualidades académicas. Esteve em centros de eleição, tem mérito e é inteligente. A minha questão é moral”, atira.

A defesa do ministro e os esclarecimentos da FCT

A entrevista de Rui Carvalho à Sábado provocou uma rápida reação do ministro da Educação. Na resposta que fez chegar à Sábado, mais tarde acompanha por um comunicado enviado pelo próprio Ministério, Tiago Brandão Rodrigues rebate os três pontos levantados por Rui Carvalho: nunca se apropriou de dinheiro do Estado; e Rui Carvalho não era seu orientador.

A documentação a que a Sábado teve acesso confirma que houve dinheiro atribuído de forma “indevida”. Num ofício da FCT, de 8 de outubro de 2002, pode ler-se que “houve um pagamento em excesso de 18.089,33 euros”, dos quais 11.731.73 diziam respeito ao valor de “propinas” por “nós pago indevidamente”. Outros 4.380 relativos a subsídios de manutenção mensal (janeiro a junho de 2002), “que foram pagos indevidamente como bolsa no estrangeiro”. Além destes valores, Tiago Brandão Rodrigues recebeu de forma indevida mais quase dois mil euros como subsídio de instalação e manutenção.

Foi Brandão Rodrigues quem, a 25 de setembro de 2002, — ou seja, ainda antes do ofício da FCT — tomou a iniciativa de informar a FCT da sua vontade de ressarcir a fundação pelos valores atribuídos de forma indevida. Nessa carta, pedia ainda a suspensão temporária da bolsa de doutoramento com efeitos a partir de 1 de outubro de 2002. O ministro da Educação fez ainda chegar à revista uma cópia do cheque passado em nome da FCT no valor de 6.329,33, a diferença entre o total em dívida (18.089,33 euros) e o valor total da nova bolsa (11.760 euros).

O ministro nega também que Rui Carvalho fosse seu orientador de doutoramento, alegando que esse papel cabia a Carlos Geraldes, diretor do departamento de Bioquímica da Faculdade de Ciências. No entanto, insiste a Sábado, um documento de janeiro de 2001, a que a revista teve acesso, parece contar uma versão diferente. Nele, Brandão Rodrigues submete ao presidente do Conselho Científico da Faculdade de Ciências e Tecnologia a descrição do trabalho a realizar no seu doutoramento. O(s) orientadore(s)? Carlos Guedes e Rui Carvalho.

Na quarta-feira, quando a Sábado decidiu publicar a primeira notícia sobre o caso, o Ministério da Educação emitiu um comunicado a contestar o conteúdo do artigo. “O ministro da Educação lamenta e repudia profundamente a publicação desta notícia e destas falsidades sem que a revista Sábado tenha tido em conta todos os esclarecimentos e documentação disponibilizados, que facilmente comprovam a mentira destas declarações e da notícia”, pode ler-se no comunicado oficial, emitido pelo Ministério da Educação.

Mais: Tiago Brandão Rodrigues questionou mesmo o timing desta notícia. “O Ministro da Educação considera que não se trata de afirmações inocentes tendo em conta o atual momento político e considerando que é o repescar de uma situação com 14 anos e há 14 anos esclarecida”. E crítica a revista Sábado: “Apesar de se ter disponibilizado toda a informação e todos os documentos relativos ao referido processo, a revista insistiu, ainda assim, em publicar a notícia.”

A terminar, o ministro manifesta a intenção de apresentar “uma queixa-crime contra quem profere e publica as falsidades prontamente desmentidas”, pode ler-se no comunicado do Ministério da Educação.

FCT garante “não haver indício de ilegalidade”

Entretanto, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) já reagiu ao caso denunciado por Rui Carvalho. Num esclarecimento a que o Observador teve acesso, a FCT garante “não haver indício de ilegalidade” e explica os detalhes do caso.

“Em 2001, e no âmbito de concurso nacional de bolsas, a FCT atribuiu uma bolsa de doutoramento a Tiago Brandão Rodrigues. A bolsa, iniciada a 1 de outubro, incluiu um período no estrangeiro, tendo sido pago o correspondente subsídio de manutenção mensal e as respetivas taxas de laboratório. Em 25 de setembro de 2002, o bolseiro informa a FCT da redução do período de permanência no estrangeiro e de que não houve necessidade de pagamento de taxas de laboratório. Na sequência, a FCT apurou o pagamento em excesso, o qual foi devolvido na totalidade.

A FCT recebe uma primeira carta do Professor Rui Carvalho, datada de 30 de setembro de 2002, alegando irregularidades. Todas as questões levantadas nessa carta foram esclarecidas, tendo a FCT apurado que nunca existiu sobreposição entre a bolsa de doutoramento atribuída pela FCT e qualquer outra bolsa.

A FCT concluiu assim, em 2002, não haver indício de ilegalidade, tendo dado o processo por encerrado”, pode ler-se no esclarecimento da FCT”.