Comecemos por uma ideia certamente consensual, formulada numa imagem extraída da mais rigorosa e irrepreensível linguagem técnica: Benjamin Clementine é o Renato Sanches da música britânica: o miúdo selvagem, cheio de talento, que ainda não doseia bem o esforço nem conhece bem as regras e Deus o abençoe por isso. Finta, fascina e perde-se. Cai e levanta-se e continua a canção, como Renato a jogada. Chuta de longe, não tem medo do épico, joga por amor. No dia em que crescer, em que amadureça, vai dosear tudo melhor, ser mais preciso, mais consciente, mais perfeito, arriscar menos, muito menos – e nós aqui estaremos a pedir que esse dia não chegue ou chegue o mais tarde possível. Afinal, a magia dos Benjamins e dos Renatos é o deslumbre. O deslumbre que, por enquanto, lhes distrai o coração de sistemas tácticos e fórmulas de canções.
Era dia da criança, mas já tinha passado da hora delas. O relógio aproximava-se das 22 e o Coliseu dos Recreios estava habitado por uma plateia invulgarmente adulta. Telemóveis no bolso, nem uma selfie em curso nas redondezas, quase ninguém a filmar, quase ninguém a fotografar, quase ninguém a mandar mensagens. Aparentemente, as pessoas estavam mesmo ali para – imagine-se – estarem umas com as outras e assistirem ao concerto. E, no entanto, quem aí vinha era um miúdo, aquele miúdo grande de 27 anos e um metro e 85, descalço e de fato preto, como de costume. E o que trazia não eram temas complexos e cínicos da vida chata dos crescidos, mas aquele vozeirão doce que urde canções para embalar adultos que às vezes se aborrecem de serem grandes.
“I Won’t Complain”, “Condolence” para a primeira ovação da noite, os múltiplos territórios de “Adios”. Clementine vai tocando os temas daquele que é, até agora, o único, mas aclamado volume da sua discografia: At Least For Now. E, a cada uma dessas primeiras canções, revela mais um capítulo do incrível dom da sua voz.
Sim, porque Benjamin Clementine é o Renato Sanches, mas também tem qualquer coisa de Antony Hegarty, agora Anohni. Ou é, pelo menos, a voz masculina mais virtuosa que apareceu, desde o ex-Johnsons, na pop. Sem a mesma instrução, provavelmente, sem o mesmo domínio técnico absoluto, mas igualmente poderoso e lírico, capaz de vir de falsetes de cristal aos graves mais baços como quem apenas brinca num baloiço. Na verdade, às vezes Benjamin é também a Billy Holiday se ela, por acaso, tivesse reencarnado num gigante. Benjamin é, enfim, muitas coisas e, na verdade, misteriosamente único.
Sozinho ao piano, começa a revelar-se um inesperado conversador. Saúda a noite quente de Lisboa e explica, no tom dolente com que sempre se move e alonga pelas palavras como estava já “cansado do tempo de Inglaterra”. Chama o baterista e um quinteto de cordas aparentemente recrutado em Lisboa e segue com “Nemesis”, “London” e “Cornerstone”, impossíveis de ouvir sem pensar que este rapaz diante de nós, este músico virtuoso e elegante foi, não há tanto tempo assim, um sem-abrigo nas ruas de Paris: “I am lonely, alone in a box of stone / They claim they loved me but they all lying / I am lonely alone in a box of my own / And this is the place I now belong / Its my home, home, home”.
O público atira os “I love you” do costume e as tentativas de discos pedidos e a Benjamin – e a todos nós, suponho – parece de repente escutar a voz de uma criança. Também seria dia da criança cá?, pergunta. E como se dizia? Como se diz “kids” em Português? Metade da sala grita “crianças”, a outra “meninos”, Benjamin não percebe – até que alguém dispara: “Putos!” – “Boots”?
Ao fim de uma hora, tinha terminado a parte “regular” do concerto. Justamente, o londrino ainda só tem um disco para amostra. Mas o Coliseu estava embalado desde os primeiros acordes – e não lhe apetecia acordar. Chamou de coração por Benjamin e ele voltou com a mesma franqueza. Tinha chegado a hora de “Winston Churchill’s Boy”, novamente a história de um rapaz. O rapaz a quem ninguém sabe o que vai na cabeça, que ninguém sabe o que anda a imaginar; o rapaz que, se calhar, um dia, será o homem – “One day this boy might be the man”.
E, então, o generoso Benjamin, que já quase não tinha repertório para tocar, mas tinha outra coisa, toda a boa-vontade do mundo e todo o amor da sala, foi buscar as canções de Seu Jorge. Assumindo que não sabia falar português e pedindo a Lisboa que não se risse, atirou-se a “Tive Razão” com um pouco de “Burguesinha”, histórias de outro músico que as canções tiraram da rua. Houve tempo para improvisos, “The People and I” e filosofia clementineana: vivam hoje e deixem o amanhã ser amanhã. Nada significa nada e tudo significa qualquer coisa – “I guess”, diz ele (nós também, Benjamin. Com tempo, isso pode ser melhor explicadinho, mas estamos a ver aonde queres chegar). Já de bandeira de Portugal aos ombros, voltou ainda para outro encore: “St-Clementine-On-Tea-And-Croissants”, “River Man” e um “Adios” final, cantado ao desafio com o público – simples, pueril, encantador.
“One day this boy might be the man”, que é como quem diz, o puto faz-se. Ontem, era o dia dele. E dos adultos a quem nem sempre apetece ser grandes.
[Benjamin Clementine actua esta quinta-feira, dia 2, no Coliseu do Porto, às 21h30. Bilhetes entre os 18 e os 35 euros]
Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).