Era médico e olhou pelos seus compatriotas durante a Segunda Guerra Mundial. Esteve naquele dia eterno em que as tropas aliadas pisaram a Normandia e mudaram a história da História. Depois, de volta a casa, recebeu condecorações e meteu-se no baseball. O futebol chamou Frank Borghi mais tarde, numa altura em que já trabalhava para a funerária do seu tio. À falta de jeitinho com a bola, agarrou-se à baliza. “Eu não tinha habilidade ou qualidade de passe”, disse o norte-americano em 2009, aqui citado pelo New York Times. “Eu sabia que conseguia agarrar a bola e lançá-la a a 45 metros. Funcionou bem para mim”, assim resumiu o herói nacional de 1950, que saiu de um relvado de Belo Horizonte confortável nos ombros alheios, que tinham sotaque e ginga brasileiros.

Esta história é dona de uns quantos suspiros. Puxando o filme à frente, 66 anos à frente, tiramos o pó ao “Jogo da Vida Deles” embalados pela Islândia, que lembrou que os gigantes também caem contra heróis improváveis, cangalheiros do fado do costume, imortais sob a relva ou vikings de barba rija. A Islândia bateu a Inglaterra por 2-1, na segunda-feira, e está a causar sensação no Campeonato da Europa.

Em 1950 a Inglaterra estreava-se em Campeonatos do Mundo, depois de boicotar as três edições anteriores. No grupo estavam Espanha, Chile e a seleção norte-americana. Diz-se que os ingleses inventaram o futebol. O palco era o Brasil, o país do futebol, do samba, do pé no chão e cachaça a passear nas entranhas. Como pedir melhor?

O score dos ingleses, desde o fim da guerra até ali, impunha respeito: 23 vitórias em 30 jogos, onde se incluía uma vitória contra a super-Itália. Aquilo estava escrito antes de acontecer. A Inglaterra contava com Stan Mortensen, Alf Ramsey, Wilf Mannion, Jimmy Mullen e a estrela maior, Stanley Matthews. O legado glorioso que ficou por acontecer estava ali a pedir um rematch, pelos gramados de Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Curitiba e Porto Alegre.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os ingleses começaram o Mundial com uma vitória por 2-0 vs. Chile, com golos de Mortensen e Mannion. Os norte-americanos decidiram assustar os espanhóis na estreia e começaram a vencer, aos 17′, com um golo de Gino Pariani. Depois, tarde no relógio, a fúria espanhola virou: pim (81′), pam (83′), pum (89′)!

Inglaterra: os números entre 1950 e 2016

Mostrar Esconder
  • Presenças em Mundiais: 14
  • Presenças em Europeus: 9
  • Eliminada três vezes nas meias-finais
  • Eliminada oito vezes nos quartos-de-final
  • Eliminada três vezes nos oitavos-de-final
  • Eliminada cinco vezes pela Alemanha
  • Eliminada seis vezes em penáltis
  • Portugal eliminou a Inglaterra em 2004 e 2006, em penáltis
  • Eliminada em 2016 pela Islândia, lembrando a derrota contra EUA em 1950…

A segunda jornada juntava os tais underdogs contra os Golias do futebol mundial: Estados Unidos vs. Inglaterra. Esperava-se uma goleada e manchetes já escritas antes do apito inicial do árbitro italiano, Generoso Dattilo. Tudo aconteceu na tarde de 29 de junho de 1950, em Belo Horizonte, a terra da futura primeira presidente do país. “Se pudéssemos dar-lhes uma boa luta e fazê-los trabalhar muito mesmo para nos ganhar… era isso que pensávamos”, explicou muitos anos depois Harry Keough, um defesa direito que era carteiro, longe daquele conto de fadas.

“Eu tinha esperança que conseguia pará-los aos quatro ou cinco golos”, diria Borghi mais tarde. Em 12 minutos, os ingleses dispararam contra a sua baliza seis vezes. Golos? Nem vê-los. O homem inspirou-se no que fizera durante a Segunda Guerra Mundial e olhou pelos seus, tapando buracos de balas, selando feridas. A baliza era como um capacete. A magia estava em mantê-la imaculada, longe de desgostos. As redes deveriam ser como estátuas, atentas e quietas, a adorar os craques que andavam ao seu redor.

Os ingleses, com a estratégia e sobranceria que caracteriza os maiores, deixaram de fora a estrela. Stanley Matthews ficou a ver aquela partida na bancada, para descansar os músculos para o duelo contra a Espanha. Na altura não havia substituições, por isso nunca seria possível colocar em campo o genial médio ala. Os norte-americanos foram ganhando confiança, e os brasileiros estavam com eles.

Aos 37′, um lançamento para os “Davides” (vs. Golias) encontrou a cabeça de Joe Gaetjens e… golo. Muita gente nem acreditou que havia sido golo, porque a bola terá descrito um movimento estranho. Há quem diga que foi sorte, que a bola bateu na cabeça de Gaetjens. A realidade deixou de soar a céu e assentou no relvado do Estádio Independência, quando as redes bailaram ao ritmo de Bossa Nova. Seria descrito como o “golo que fez o mundo tremer”.

“Vamos segurar isto como pudermos até ao intervalo”, pensaram, contou Harry Keough à FIFA. “É que os ingleses ficaram chateados e começaram a pressionar muito. No intervalo ninguém no balneário sonhava que poderíamos ganhar por 1-0 no final…”. E não foi fácil. Os ingleses continuaram a cercar a baliza de Borghi, que ia parando os tiros dos inimigos como podia. Os ferros da baliza de Borghi tilintaram mais do que uma vez. O universo estava do seu lado. “Estávamos a lutar pelas nossas vidas”, diria Walter Bahr, um defesa.

A oito minutos do fim teve uma ajuda decisiva: Mortensen seguia isolado, ia ficar olhos nos olhos com Frank Borghi, por isso o senhor Charlie Colombo ajudou-o a encontrar o caminho terrestre para a eternidade. Colombo desatou a correr atrás do inglês e lançou-se, agarrando-o pelas pernas. Foi uma placagem. Keough contou esta história entre sorrisos. Pudera…

Na ressaca, havia um livre quase na risca da grande área para bater. Alf Ramsey, futuro selecionador inglês, bateu e Jimmy Mullen cabeceou a bola, que parecia ter um encontro marcado com as redes de Borghi. O guarda-redes voou para a sua direita e sacou a bola. Harry Keough chutou-a para longe. Os ingleses queixaram-se de que estaria dentro da baliza, que era golo. O árbitro, coincidência ou não, de nome Generoso, mandou seguir. A Colombo, que tinha ascendência italiana, soltou um “buono, buono…”

“Os ingleses estavam a dizer que tinha passado a linha”, contaria Keough muitos anos depois. “Se calhar passou. Mas não o vi dessa forma…”

“Nunca esquecerei”, disse Borghi à Associated Press, em 2002, aqui citado pelo USA Today. “Mas se tivéssemos jogado contra eles no dia seguinte, eles teriam vencido provavelmente por 10-0”, contou o guarda-redes, que durante os minutos finais desesperou pelo derradeiro apito.

Quando o jogo finalmente terminou, os brasileiros levaram aos ombros também Gaetjens, um filho de mãe haitiana e pai belga (fotografia do segundo tweet em cima). Gaetjens mudou-se para Nova Iorque para estudar contabilidade na Universidade Columbia. O outro herói, o do golo mais importante da história do futebol norte-americano, lavava pratos num part-time. Ele nem tinha nacionalidade norte-americana, segundo o New York Times, mas como havia demonstrado essa intenção foi convocado para o Campeonato do Mundo. Uma intenção, no entanto, que não passaria disso mesmo, pois foi dado como presumivelmente morto em 1963, depois de desaparecer no Haiti. Ele e a sua família terão sido assassinados por serem críticos do ditador François Duvalier.

A aventura norte-americana na Copa-1950 terminaria no último lugar do grupo, após a derrota contra o Chile (2-5) de Fernando Riera (marcou um dos cinco golos), um homem que treinaria o Belenenses, Benfica e FC Porto nas décadas de 50, 60 e 70. No Estádio da Luz teria até a desafiante tarefa de substituir Bella Guttmann, o tal da maldição europeia.

Os jogadores da seleção norte-americana de 1950 foram todos imortalizados no Hall of Fame do futebol nacional do país, em 1976. Esta história, de um só jogo memorável, ganharia vida sob a forma de um livro e depois de um filme. Gerard Butler vestiu a pele de Frank Borghi. “Os rapazes vão gozar-me, sabes. Ele é um homem bem-parecido”, disse Borghi antes da estreia do filme The Game of Their Lives, conta o USA Today.

Walter Bahr é o único sobrevivente dessa leva da seleção nacional da terra do Uncle Sam. Bahr era professor e ganhava 50 dólares. Na seleção recebia 100 por semana. “Era o dobro do que eu ganhava enquanto professor”, disse ao NYT, entre gargalhadas. Primeiro pediu dispensa à escola, já perto do final do ano letivo, mas o pedido foi recusado. Depois, os responsáveis pela escola pensaram duas vezes e voltaram atrás, permitindo-lhe ficar na história do futebol daquele país.

“Uma coisa que me chateia é as pessoas da nossa federação referirem-se à nossa vitória como sorte”, acusou Bahr. “Não houve sorte. As coisas acontecem no desporto. A bola pode cair para qualquer lado.” Walter Bahr tem 89 anos.

Quanto a Frank Borghi, natural de St Louis, de onde eram cinco da seleção de 1950, morreu aos 89 anos, em fevereiro de 2015. Borghi sofria de Alzheimer, conta o St Louis Today. Foi casado durante 61 anos e deixou sete filhos no mundo, para contarem aos amigos, filhos e netos quem era Frank Borghi.

“A melhor parte do Frank era ser um cavalheiro”, conta ao St. Louis Today Pete Sorber, um ex-adversário de Borghi no futebol nacional. “Ele não poderia ter sido alguém mais simpático. Tinha sempre um sorriso.” Agora, ao vermos a Islândia a bater o pé ao monstro inglês, sorri a história, porque é destapada e contada outra vez.