Rodrigo Amarante regressou a Lisboa de barba comprida, camisa e calças, andar meio desajeitado como se cada passo carregasse a consciência do mundo. E tudo com uma empatia contagiante, num concerto em que o músico brasileiro se foi desculpando antecipadamente por cada erro que pudesse cometer (e que nunca cometeu), numa atitude “pouco profissional” porque é “um amador: amo isso”, dizia, a canções tantas, o ex-membro dos Los Hermanos no concerto que deu esta terça-feira no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa. Talvez Abel Xavier, famoso pela sua desconstrução silábica das palavras acabadas em “dor”, levasse a palavra para outras praias, mas o músico do Rio de Janeiro levou-a para as suas, as de um Brasil que canta as saudades de sorriso nos lábios.
Ainda o concerto estava longe do fim e já Rodrigo Amarante nos dizia que tinha de “pedir músicas emprestadas”, porque as suas já as tinha tocado todas. As suas são as de Cavalo, primeiro e único disco a solo que editou, em 2014, compêndio de delicadíssimas canções que nos trazem a pausa e a contemplação que a vida contemporânea teima em afastar. Rodrigo Amarante tocou-a na íntegra, em Lisboa, para felicidade do público que reagiu com grande entusiasmo a temas como “Irene”, “Tardei” ou “Maná”, esta última uma espécie de samba rock malandro que nos fez sentir a falta de uma banda de apoio (desde logo pela falta de percussão, a marcar o ritmo).
Como a arte aguça o engenho e Rodrigo Amarante não está nisto há dois dias (o seu primeiro disco com os Los Hermanos, por exemplo, já saiu há 17 anos), resolveu o problema sem grandes dificuldades: mostrou-nos canções novas — uma delas terminada nessa mesma tarde, já em Lisboa —, outras nem novas nem velhas — mais antigas, é certo, mas ainda por editar —, cantou “Tuyo” (do genérico da série “Narcos” ) a pedido do público e foi buscar, por exemplo, “Evaporar” e “Pode ser”, que gravou nos seus grupos anteriores Little Joy e Orquestra Imperial (respetivamente).
O músico brasileiro já veio a Portugal “mais de dez vezes”. No Tivoli, foi como se fosse a primeira (ou, mais dramaticamente, a última), tocando a solo, sem banda por trás. “Tudo pode acontecer. Perigo total. Vulnerabilidade absoluta”, atirava, já o concerto — começado pouco depois das 21h30 e terminado depois das 23h00 — ia avançado. Antes, de guitarra nos braços, encarando o público sem proteção, também já o tinha dito, mas por outras palavras: “‘Tou aqui me controlando, sentindo cada verso. Carai'”.
Foi assim, de viola na mão e ao piano, num cenário íntimo que o público soube respeitar com o seu silêncio, que o concerto foi rolando. Rodrigo Amarante de um lado, a mostrar que a “magia” de que falava lhe saía mesmo da pele, com ocasionais inflexões na voz e esgares constantes da face, na procura da maior afinação possível. E a plateia quase cheia do Tivoli do outro, cúmplice, atenta, contagiada desde início pelo feitiço da delicadeza da sua música. Um reencontro de velhos amantes à procura dos braços alheios, depois de um ano de desencontros — ainda que alguns não tenham enjeitado enlaçar-se nas pessoas da cadeira ao lado, que a banda sonora era propícia e complementar os amores platónicos com paixões de carne e osso, dizem estudos científicos, dá saúde e anos de vida.
Antes de se atirar a “Tardei”, o músico do Rio de Janeiro (que vive há oito anos fora do Brasil e tem atualmente morada em Los Angeles) dizia que tinha ficado a pensar na maneira como os militares cantam enquanto marcham, em fila indiana. “A turma cantando enquanto marcha”. Não que tenha simpatia pelos exercícios militares, “muito pelo contrário”, mas a ideia ficou e serviu de mote à escrita da canção. No fundo, disse-nos, “a música ajuda a continuar o caminho”. Talvez falasse de si, talvez de todos os que ali estavam, talvez até da humanidade em geral, músicos e ouvintes, melómanos ou ocasionais. Que ele a faz bem, como poucos, é cada vez mais uma evidência. Lisboa pôde comprová-lo esta terça-feira. Seguem-se Faro (quarta-feira), Leiria (quinta-feira), Aveiro (sexta-feira) e Braga (sábado).
Além da música, Rodrigo Amarante ainda nos ofereceu um poema, escrito pouco antes do concerto, já nos camarins. Começava assim: “Lisboa, que pena que só me vês assim / mal dormido, mal vestido, um lixo, enfim. / Tens que me ver às três da manhã, com uma garrafa de gin“. E terminava com “Aí sou lindo, alto, louro”. A última palavra, rima de “enfim”, fugiu-nos do ouvido. A música ficou. Show de bola.