Vejo muito, muito, muito pouco, mas no golfe sei que há sempre um tipo que anda atrás do jogador, com um saco gigante às costas, cheio de tacos diferentes, só para servir quem neles pega e tenta acertar com a bola no buraco. É um subserviente, está ali para servir um jogador. De boxe já pesco mais qualquer coisa, há muitos filmes sobre quem anda de luvas postas e aos murros, dentro de um ringue. Aí também há um treinador, um senhor que cura feridas, outro que segura o balde para o lutador cuspir água ou sangue, outro ainda para lhe tirar o casaco com que entra no pavilhão. É mais ou menos assim, vários a servirem apenas um. Nos dias anteriores a este jogo em Lyon, parece que, entre vinte e dois homens, há dez de cada que vão estar em campo para servirem um tipo especial.
No futebol ninguém joga sozinho e já não sei quem disse que o talento pode ganhar jogos, mas apenas uma equipa vence competições. Quase uma semana se conta, porém, em que a meia-final de um Europeu é espremida num duelo entre dois homens por serem do mesmo clube, por serem craques, por supostamente não irem muito à bola um com o outro, pela Bola de Ouro que está a meio ano de chegar, por tudo e mais alguma coisa. E os outros talvez só lá estejam para os servirem e fazerem brilhar. Era só o que faltava, por isso o que Ronaldo e Bale fazem até ao intervalo é isto:
Cristiano Ronaldo: dois remates à cabeçada, sobre a barra, 16 passes, 81% certos, 21 toques na bola, quase todos inúteis, muita vontade, pouca influência.
Gareth Bale: dois remates com o pé esquerdo, um na baliza, 20 passes, 80% de eficácia, 29 toques na bola, um contra-ataque feito sozinho, perigoso, mas não muito.
Aqui são onze contra onze e também não me lembro de o futebol ter algo que ver com luta livre. Mas deixa-se passar a manobra de estrangulamento que Collins aplica a Cristiano, na área, um braço a fechar-se no pescoço português, que não o deixa saltar (10’) a uma bola cruzada por Cédric. Qual apito. O resto faz lembrar o xadrez só pelo muito que se parece estar a pensar no relvado. Os cinco que Gales tem perto da linha do meio campo e os extremos que Portugal não tem tornam a vida complicada ao centro. Só há Cédric e Raphaël a pedirem a bola nas linhas e os celtas esfregam as mãos, por assim lhes ser mais fácil tapar linhas de passe a Danilo, Adrien, Renato e João Mário.
Os galeses defendem muito, não se importam de ter a seleção a trocar a bola a meio campo, com os médios de frente para a baliza, mas longe dela. Os portugueses, a defender, esperam com Nani e Ronaldo na linha onde o jogo começa. Com o trânsito que há por ali, onde raro é ver uma tabela, exceto a que Ronaldo dá a João Mário para o médio rematar a bola rasteira e bem ao lado (16’), a solução é levantar a bola e passá-la pelo ar. A seleção resiste à tentação como a criança que fecha a boca à colher de sopa que não gosta, mas os galeses dão-se bem por terem um Robson-Kanu com moral. Ou, se quiserem outra analogia, com a seta para cima como os jogos de PlayStation, em que todas as bolas que procura consegue receber e segurar, apesar de Bruno Alves e José Fonte terem mais um palmo de altura e de corpo do que ele.
No meio disto há que escrever sobre Bale, por Danilo se esquecer de quem tem à frente após um canto ofensivo português, em que vai à bola com um carrinho e a põe a jeito dos pés de lã do galês. Que desviou a bola, arrancou, estabeleceu um recorde nos 50 metros de relva livre que tinha à frente e rematou sozinho à entrada da área. As mãos de Rui Patrício tiveram íman. É o único remate na baliza até ao intervalo (23’) porque, quatro minutos antes, um canto que Ledley bate rasteiro, para a marca de penálti, é rematado de primeira, mas sobre a barra, por Bale. E a seleção de Gales, que sempre esperou pela outras neste Europeu, acaba com mais passes e mais bola que Portugal, que pelos vistos espera mais ainda.
São mais 45 minutos de empate e menos uma parte de jogo que falta no caminho de Portugal rumo ao sexto empate na competição. A cautela no campo é o aborrecimento para quem vê, parte da culpa é da seleção, que apenas sacode as rédeas em que tem de pegar, raramente coloca um dos quatro médios à frente de onde está a bola. Os contra-ataques de Gales estão sempre presentes a um canto da mente. O risco é muito pouco, ou é guardado para as bolas que param num sítio.
Como o canto que João Mário não cruza e dá nem um metro para o lado, onde é o pé esquerdo de Raphaël que bate a bola para a área. O efeito curva a bola de fora para dentro, o bloqueio improvisado por José Fonte ao centralão Chester resulta, é logo atrás deles que Ronaldo salta e parece levitar no ar, mais alto que toda a gente. A testa dá-lhe o terceiro golo (50’) no Europeu e o nono entre quatro edições (2004, 2008, 2012 e 2016) em que participou, para apanhar o que Michel Platini fez em apenas um torneio (1984). O capitão é engolido por abraços, os mesmos que recebe passados três minutos, quando não irrompe pela área e a intuição lhe diz para ficar à porta. À espera.
A ressaca de um cruzamento chega-lhe, os galeses assustam-se, não lhe tapam logo o caminho. Um toque para o lado e remate, a bola sai rasteira em vez de se tornar num míssil, passa perto de Nani, que se estica para lhe dar o toque que destroça os galeses. Sofrer dois golos em três minutos e logo no arranque da segunda parte é das piores formas de retornar a um jogo. O que torna bem complicado de dar a volta ao resultado.
De râguebi já percebo alguma coisa e, mesmo que no meio haja uma bola oval, aí está um desporto em que os mais fortes no papel ganham quase sempre aos fracos. Há poucas surpresas. Essa é o tipo de bola e de jogo em que o País de Gales prospera, e aos poucos começa-se a notar aqui no futebol jogado em Lyon que, a perder e a ter que reagir, é outra coisa. Os galeses têm poucas armas, as jogadas acabam em cruzamentos, a ausência de Aaron Ramsey tira Gareth Bale da área, para bater os livres, e o craque vai-se parecendo cada vez mais com o outro que está em campo. O desespero galês faz Bale assemelhar-se ao Ronaldo que chuta cada bola que recebe.
Há um remate atraído (77’) pelas mãos de Rui Patrício e outro que obriga o guarda-redes a evitar um golo dos gigantes (80’). O pé esquerdo de Bale pede a bola, exige-a para ele, vai à área buscá-la como um trinco, bate com a mão no peito para a receber nos lançamentos, desmarca-se a sprintar para a tentar cruzar para alguém. Ele assume, tenta e dá tudo, mas, mesmo com ele, o tudo de Gales é pouco. A equipa nada produz além dos seus remates e desequilibra-se. Abre espaços para Renato correr, meter para dentro e rematar por cima (73’). Faz faltas que dão a Ronaldo um livre que rasa a barra (63’). Dá espaço ao balázio de Nani, que Hennessey defende para a frente para João Mário não acertar na recarga (66’). Precipita-se para Danilo ser ladrão à entrada da área e rematar demasiado em jeito (78’).
Os galeses jogam como não estão habituados e os portugueses mostram estar com o costume de se manterem organizados, com as linhas juntas, a pensarem com calma, a controlarem os ímpetos. Portugal joga futebol e não à bola, terá repetido e repensado Fernando Santos, no banco. É assim que festeja o apito que lhe dá a passagem à final, que leva Ronaldo a Paris e deixa Bale em Lyon, porque há um que tem bons e muito bons jogadores à volta dele e há outro que se rodeia por tipos razoáveis e alguns bons. A diferença está nisto e, já agora, também nos números que há ao final do jogo:
Cristiano Ronaldo: nove remates, dois na baliza, 29 passes, 79% no destino, 45 toques e uma partida decidida com um golo e um passe para outro. É eleito o homem do jogo.
Gareth Bale: cinco remates e três bolas no alvo, 45 passes e 68% de sucesso, 75 toques são muitos e ele é muito, mas torna-se pouco no meio da equipa que não o acompanha.
E a diferença, a maior, está no senhor que há mais de um mês nos dizia a todos que ia a França para acabar em Paris. No homem de camisa e engravatado que, mesmo a começar mal o Europeu, acreditou e prometeu que apenas regressaria a casa a 11 de julho. No selecionador que se estava nas tintas e afirmou que, se fosse possível, assinava o papel que lhe garantisse chegar à final só com empates. Não foi preciso, a primeira vitória em 90 minutos apareceu aqui em Lyon. É um homem de palavra, o Fernando Santos. Vemo-nos no Stade de France.