Porquê?
Até tu, Nani, no primeiro pontapé que se dá no jogo, hesitas. Levas a perna três vezes atrás, preocupas-te com o Giroud que te quer pressionar e não pode. Acordas os assobios dos franceses, que ganham por goleada nas bancadas. Começam logo a apertar com vocês, querem-vos desconfortáveis, a acusarem a pressão, engolidos pela importância do momento. Nervosos. Mas não há motivo para isso, Nani, ou José Fonte, ou William ou Renato. Vocês arrancam a tremer, a fazerem mais erros não forçados do que forçados, como se diz no ténis. Parece que a bola queima, como tanto se costuma dizer no futebol.
O central faz um passe rasteiro, à frente da área, com força a menos. Griezmann apanha-o, é um ver se te avias para resolver o problema. O trinco tem um passe fácil por fazer, mas torna-o difícil, levanta a bola e bate-lhe com força, complica a vida ao médio das rastas, que tenta dominar a bola com as canelas e deixa-a sair do campo. Até tu, Pepe, que és dos senhores que melhor defende neste Europeu, corres com a bola, demoras muito a tentar passá-la e ficas sem ela para o Payet a levantar num passe longo. Ele encontra a cabeça do Griezmann, que foge para a área e remata para o Patrício fazer a melhor parada até ao intervalo.
Salvo o passe longo em que Cédric despacha a bola para o sítio onde Nani aponta uma diagonal, em sprint, da esquerda até à direita, em que ele mata a bola no peito e violento é a rematá-la pouco por cima da barra (4’), vocês passam quinze minutos a tremerem. Porquê? Pelo que vejo aqui de cima, sofrem com os franceses que pressionam como loucos, com fome de bolas recuperadas perto da área portuguesa, com uma mudança acima nos momentos em que vão disputar a bola. Eles metem o pé com força, são brutos, entram com tudo e fazem-no onde não devem.
Como no joelho de Ronaldo, enquanto ele tem a perna esquerda fixada na relva. O Payet atropela-o quando o capitão tenta que vocês respirem e segura a bola. O Cristiano cai, senta-se no relvado, esfrega a dor, queixa-se. Faz cara feia. Ele continua, mas coxeia, fica magoado e insiste durante uns minutos até cair na relva. Ele chora, solta lágrimas, está desolado, sente que o corpo não o deixa jogar mais o jogo da vida dele. Mas ele insiste, sai do campo e pede que lhe envolvam o joelho em ligaduras. Ronaldo volta. Corre um pouco, ainda aguenta com o peso de Umtiti nas costas, na jogada que acaba com Adrien a rematar torto, mas não dá. Ele chora como um bebé que acaba de nascer e os franceses que o assobiavam agora o aplaudem.
Porquê o Ronaldo? Tinha de ser logo ele, o miúdo que já chorou baba e ranho há 12 anos, o craque com o mesmo nome de outro, que em 1998 também jogou uma final neste estádio, magoado (foi Ronaldo, o fenómeno, o brasileiro), a levar com um azar destes. Deu vontade de chorar com ele.
É sem o Cristiano em campo que a seleção sofre. Os franceses demoram até abrandarem a pressão. Têm em Sissoko um bicho a correr com bola, que torna fácil comer metros e ultrapassar portugueses em corrida. Ou com esperteza, como o faz quando abre as pernas para deixar passar a bola, enganar Adrien na área e ir buscá-la mais à frente, para a rematar com força (43’) e às mãos de Rui Patrício. A seleção tem menos bola, mal a consegue trocar na metade do campo dos gauleses. Adrien é lento a fazer as coisas, William dá passes armadilhados, apenas João Mário dá calma às jogadas em que vocês têm de ter a bola com calma para ganharem confiança. Os franceses rondam muito a vossa área, mas há Fonte para controlar o Giroud e há o Pepe para cortar tudo à última, quando eles vão rematar ou fazer aquele último passe.
Mas porquê?
Talvez pela altura, o físico e o corpanzil que os franceses têm a mais que vocês, portugueses que sofrem com isso a cada bola mais dividida, a cada passe que obriga a ver quem é mais rápido, a cada bola que se disputa no ar. É difícil, percebe-se, e por isso defendem atrás da linha do meio campo, quase num 4-5-1 que obriga todos a correrem muito. Não é que a França toque mais a bola que Portugal, mas faz muitos mais passes em meio campo alheio do que a seleção. Esse físico impõe-se, ganha muitas vezes aos pés que, em técnica, estão de igual para igual.
Os minutos passam e vocês ficam cansados. Sissoko parece ter a força de mil homens no corpo, cada vez que sprinta com a bola faz-vos sentir perigo. O relógio anda e o que está entre vocês de luvas postas vai-se tornando o melhor que têm em campo. O Patrício agarra bolas vindas de cantos e cruzamentos. Assusta-se quando vê Griezmann cabecear sozinho, e por cima (58’), a bola vinda do pé direito de Coman — substitui o Payet, que só deu ao jogo a saída de Ronaldo –, que fixa o Cédric e o Quaresma e torna-se uma preocupação no resto do tempo. Porquê?
É ele que mais tenta driblar, enganar e cruzar a bola para a área e os franceses procuram-no muito. Os problemas que vocês têm são quase todos criados por ele. Quando Giroud remata, na área, para agigantar o Patrício, quem faz o passe é Coman (75’). Este extremo faz muitas bolas entrarem na área, rasteiras ou pelo ar. E vocês, cansados, a lutar, a darem tudo, só dão nas vistas quando Éder entra em campo. É hora de experimentar o 4-3-3 e, na primeira jogada que o fazem, o Nani quer cruzar, mas remata, o Lloris por fim tem trabalho na baliza, evita o golo (80’) e, na ressaca, agarra a bola rematada à pedalada por Quaresma. Mas isto não chega.
Porque os franceses, por este altura, já são melhores com a bola, nas corridas, na forma como chegam à área portuguesa. Rui Patrício torna-se o melhor português em campo, ainda mais quando se estica todo para desviar uma bomba que Sissoko dispara à distância (84’) e vê, de perto, o poste esquerdo a dar um prolongamento à final, quando Gignac faz o Pepe parecer um tolo pela única vez neste Europeu e o deixa deitado na área, aos 93’.
É a terceira vez que vocês jogam 120 minutos aqui em França, que canseira. Tinha tudo para vos ver a quebrar. Já não havia substituições, pareciam estar de rastos, os franceses eram uns matulões, pareciam estar ainda algo frescos. Mas não. O Ronaldo saiu do balneário, foi coxo para o banco, quase nunca se sentou. Vibrou, puxou por vocês, gritou, disse-vos coisas. Viu-vos a ameaçarem a baliza em dois cantos e com o Pepe e o Éder a cabecearem. Reparou como este avançado, que mal jogou antes, jogou muito agora. Segurou todas as bolas, foi o único a ter corpo para eles, tomou sempre a melhor opção, foi tão grande como o Patrício estava a ser na baliza.
Como a barra pareceu grande para a única bola que o Raphaël Guerreiro bateu num livre, neste Europeu, ir lá bater. Foi quase perfeita, uma delícia, a maneira como o miúdo que mal arranha o português fez o pé esquerdo inventar uma forma de a bola passar por uma barreira de franceses. Eles, a bola e o Raphaël, ficaram ali porque houve uma bola na mão de Éder que o árbitro pensou ter sido na de um francês. Parece que eles lhe ganharam respeito. Só pode, não sei é como. Porquê?
Porque vi e vimos todos como, dois minutos volvidos, Éder recebeu um passe de Moutinho, virou-se, estava longe da área, correu em direção a ela e nenhum central lhe saiu ao caminho. Ficaram a ver. Como todos viram a bola que ele, o patinho feio, o único avançado, o alvo de gozo, a quem muitos não davam nada, rematou rasteira para dentro da baliza. E aqui, desculpem, mas já escrevo após a final, a festa, as lágrimas do Ronaldo e tudo mais. Esse golo tornou Portugal no campeão da Europa. E nós merecemos.
Nem tenho de explicar porquê. Mas é pelo que chorámos há 12 anos, quando uns gregos nos deram as lágrimas nas nossas barbas. Pela meia-final que, há 16, os franceses nos roubaram. Pela outra em que Michel Platini foi um patife, em 1984, à frente dos tantos bigodes que então a seleção tinha. Pelas lágrimas que Ronaldo deitou em 2004, pelas que não conteve aqui, no Stade de France, após querer insistir com a lesão e querer jogar. E também pelo choro que voltou a ter assim que o árbitro apitou, de alegria.
Mas isto são questões morais. Há quem ache que elas não chegam para Portugal merecer o que seja, então puxo pelos factos. Porquê? Ora, porque foram sete jogos no Europeu em que ninguém ganhou a Portugal ou foi melhor que a seleção. Se acharem que, mesmo assim, não merece, é como disse o Fernando Santos — ele e os jogadores vão felizes para casa. E eu também.