Uma declaração do presidente da ERSE colocou na praça pública um tema que já era do conhecimento privado e estava plasmado em documentos públicos, como o Orçamento do Estado para 2016. Ficaram por depositar 50 milhões de euros da receita da contribuição sobre o setor da energia, cobrada no ano passado, no fundo para o sistema elétrico.

O dinheiro deveria ter entrado até ao final de 2015, de forma a cumprir a previsão que o regulador utilizou para calcular os preços da eletricidade fixados para este ano. Por razões ainda por explicar, essa transferência não foi feita. E se tal não acontecer nos próximos meses, quem vai pagar são os consumidores de eletricidade que vão ter de compensar nas tarifas de 2017, a receita que o sistema elétrico não recebeu. Mas, para já, a demora na transferência até está a beneficiar as contas do Estado, isto porque quando a verba sair para o sistema elétrico será contabilizada no défice público.

Em causa está uma transferência que pode até ser inferior a 50 milhões de euros. A contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE) não alcançou a receita prevista de 150 milhões de euros em 2015, já que a Galp se recusou a pagar e contestou a taxa em tribunal. Um terço será, por este motivo, menos do que 50 milhões de euros. E ainda falta saber o que irá acontecer com a CESE de 2016.

O governo diz que está a trabalhar numa solução, mas em resposta ao Observador o Ministério das Finanças assume que essa solução diz respeito apenas a este ano, lembrando que nos anteriores a responsabilidade pertence ao anterior governo. Ou seja, tudo indica que os 50 milhões de euros considerados no ano passado e que não foram recebidos vão mesmo penalizar os preços do próximo ano. Se tivermos como referência os proveitos anuais de seis mil milhões de euros do sistema elétrico, o impacto será uma subida de 0,8%.

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O que foi dito?

O alerta público foi dado pelo presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) durante uma audição no Parlamento que decorreu nesta terça-feira. Vítor Santos revelou que a transferência prevista de 50 milhões de euros das receitas da contribuição extraordinária sobre o setor de energia, que deveria ter sido feita no ano passado em benefício das tarifas elétricas, não foi realizada.

“Apesar de estar estabelecido que a CESE [Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético] devia ser depositada no Fundo, […] esse depósito não aconteceu”. O anterior governo criou a CESE em 2014 e aprovou uma lei que previa a transferência de um terço desta receita fiscal para um fundo de sustentabilidade do setor energético com o principal objetivo de usar essa verba para baixar o défice tarifário e conter o aumento do preço da eletricidade. Como essa transferência não foi concretizada, “há aqui um desvio que pode ter reflexos tarifários”, avisou o presidente da ERSE.

Horas depois, o antigo ministro da Energia, Jorge Moreira da Silva, responsabilizou o atual ministro das Finanças por não terem sido transferidos os 50 milhões de euros da contribuição extraordinária para o Fundo para a Sustentabilidade do Sistema Térmico.

“Pelos vistos, a transferência dos serviços do Ministério das Finanças para o Fundo, que deveria ter ocorrido no final do ano, não teve lugar [até então] como não teve nos primeiros sete meses deste ano, pelo que qualquer esclarecimento deve ser dado pelo atual ministro das Finanças [Mário Centeno]”, afirmou Moreira da Silva à Lusa.

O atual governo devolveu a responsabilidade. “O Governo está a trabalhar para que este ano, do exercício de 2016 – o primeiro deste Governo –, esta situação seja regularizada, sendo que os anos de 2014 e 2015 são da responsabilidade do anterior governo”, disse fonte oficial do Ministério da Economia. Já esta quarta-feira, Manuel Caldeira Cabral garantiu: “Estamos a trabalhar para que se cumpra a lei, que é contribuir para a eficiência energética, para baixar os custos e o défice tarifário”. Também no Parlamento, o ministro da Economia sinalizou que terá de acontecer “essa transferência que não aconteceu nos últimos dois anos, não se cumprindo o previsto na lei”.

O que está em causa?

O governo PSD/CDS, já com Jorge Moreira da Silva na pasta da energia, criou em 2014 uma contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE). A taxa seria cobrada sobre os ativos das principais empresas de energia e deveria gerar uma receita anual de 150 milhões de euros. Esta foi, no essencial, uma medida de consolidação orçamental negociada com a troika, mas ficou salvaguardado que uma parte da receita prevista (um terço ou 50 milhões de euros) seria usada para abater outro défice que não o do Estado.

A eliminação do défice tarifário da eletricidade, então superior a cinco mil milhões de euros, foi um compromisso assumido por Portugal com os credores internacionais, mas as medidas tomadas pelo anterior governo, e os anunciados cortes na remuneração das empresas, revelaram-se insuficientes para cumprir o prazo estimado de final de 2020. Abater o défice tarifário significa, também, aliviar a pressão para a subida das tarifas de eletricidade pagas por todos os consumidores, uma vez que são estas que têm de suportar os custos deste défice.

A cobrança da CESE arrancou em 2014, mas os seus efeitos só seriam sentidos nas tarifas calculadas em 2015 para o ano seguinte, 2016. O regulador contabilizou os 50 milhões de euros da receita da contribuição neste cálculo, travando um aumento mais significativo dos preços. A receita foi contabilizada nas tarifas, mas não chegou a entrar até ao final do ano passado, como estava previsto.

Porque não foi feita a transferência?

É neste ponto que a história se começa a complicar com várias versões, ou pelo menos várias leituras do que aconteceu. Uma das primeiras explicações vai bater na transição política e no período de vazio governativo que Portugal viveu durante dois meses, entre outubro e dezembro de 2015.

A operação exigia a intervenção dos Ministérios das Finanças e da tutela da energia. O Ministério do Ambiente, que tinha a pasta energia, terá pedido, soube o Observador, ao Ministério das Finanças do anterior governo que operacionalizasse a transferência da receita da CESE para o Fundo de Sustentabilidade do Sistémica Térmico. Esta entidade é tutelada pela Direção Geral do Tesouro (Finanças) e pelo ministério que tem a energia. Desta verba saíram os 50 milhões de euros para as tarifas. Mas as Finanças foram invocando questões burocráticas para demorar o processo, além de que terão argumentado que este tipo de operações normalmente ocorre no final do ano.

O novo governo tomou posse no início de dezembro e a pasta da energia regressou ao Ministério da Economia. Por razões que não foi possível apurar, também não aprovou a ordem de transferência, nem em 2015, nem até agora. Esta era, no entanto, uma situação conhecida do executivo socialista que no relatório do Orçamento do Estado em 2016, apresentado em fevereiro, escreveu:

“Por último, de salientar a não realização de despesa relativa ao financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental e de redução da dívida tarifária do sistema elétrico nacional, pelo Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (-50 milhões de euros)”.

Outro argumento que pode ter sido invocado para a demora na operação foi o facto de uma das maiores contribuintes da CESE, a Galp, ter avançado com uma impugnação judicial da taxa e se ter recusado a pagá-la. A Galp apresentou uma garantia bancária superior em 25% ao valor da taxa que não pagou e que era da ordem dos 35 milhões de euros. A REN também contestou, mas pagou. A EDP liquidou a CESE no prazo previsto. O que é certo, é que a cobrança de uma parte desta contribuição não chegou a entrar nos cofres do Estado, como previsto, o que conduz à dúvida seguinte.

São mesmo 50 milhões de euros em falta?

Tudo indica que não. O número dos 50 milhões de euros nasce da contagem de um terço da receita total prevista para a CESE original e que era de 150 milhões de euros. Mas, como já ficou explicado, a Galp não pagou a CESE que lhe cabia e a receita final apurada com esta contribuição no ano passado foi de 115 milhões de euros, segundo revela a Conta Geral do Estado relativa a 2015.

O decreto-lei de 2014 que cria o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético estabelece como finalidades o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética e a redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético.

Segundo este decreto, o Fundo deveria receber a totalidade da receita da contribuição sobre o setor energético que é a sua principal fonte de receita. Aliás, está mesmo previsto que “os montantes arrecadados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em cada mês, a título de contribuição extraordinária sobre o setor energético, são transferidos para o FSSSE até ao último dia útil do mês seguinte”. Mas isso não foi feito até agora.

O decreto determina, ainda, como devem ser gastas as receitas que o fundo receberia da CESE com a “seguinte ordem de prioridade”:

  • a) A cobertura dos encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a), do artigo 2º — o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética — no montante correspondente a dois terços da receita referida (a CESE) até ao limite máximo de 100 milhões de euros. Esta é a fatia de receita que fica no Estado e que entra para as contas orçamentais.
  • b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º (redução da dívida tarifária) no montante remanescente.

Ora, como a receita foi de 115 milhões de euros, a verba a canalizar para o défice tarifário corresponderia, no cenário mais otimista, a um terço deste valor: cerca de 38,3 milhões de euros. Esta é, pelo menos, a visão do lado da Energia. Do lado das Finanças, há quem argumente que, como o decreto estabelece uma ordem de prioridade no destino das verbas, o Estado teria direito a 100 milhões de euros. Sobrariam apenas 15 milhões de euros para beneficiar as tarifas elétricas.

Como é que este “buraco” ameaça os preços da eletricidade?

Qualquer conta que se faça, dos 15 milhões aos 50 milhões de euros, uma conclusão é evidente: há um buraco, um desvio, nas contas que serviram de base à elaboração das tarifas de energia elétrica que os consumidores estão a pagar este ano. O presidente da ERSE assume que os cálculos que sustentaram a proposta tarifária para este ano partiam de uma receita prevista de 50 milhões de euros.

Se esta verba não entrar, ou se o valor for inferior, o regulador terá de compensar o desvio na proposta de tarifas para 2017. E, quanto maior for a diferença para os 50 milhões de euros, maior o impacto no preço final da eletricidade. A somar a este “buraco”, está ainda a incerteza quanto à contabilização em tempo útil da receita da CESE relativa a 2016. O ministro da Economia assegura que está a trabalhar para que a lei que estabelece a transferência de um terço desta contribuição para as tarifas seja cumprida. O sinal terá de ser dado até outubro, mês em que a ERSE apresenta a proposta de tarifas para 2017.

O Ministério das Finanças clarificou entretanto, em resposta ao Observador, que a solução que está a ser trabalhada se refere apenas ao exercício de 2016, sublinhando “que os anos anteriores não são da responsabilidade do atual governo. Nesse sentido, o Governo, por articulação entre o Ministério das Finanças e o Ministério da Economia, encontra-se a acompanhar a situação e a avaliar soluções para a mesma”.

Outra questão em aberto é o valor a transferir. Será regularizada a “dívida” que ficou do ano passado ao fundo da energia? A resposta das Finanças parece indicar que não. O Ministério da Economia não respondeu, para já, às perguntas do Observador. E qual será a receita da contribuição extraordinária este ano? O Orçamento do Estado prevê que a receita da CESE seja inferior em 2016, estão inscritos 90 milhões de euros, contra 150 milhões de euros.

Mau para o défice tarifário, bom para o défice do Estado

Outra interrogação subjacente a este mistério dos 50 milhões de euros remete para as razões por detrás do atraso na transferência de fundos determinada pela lei e prevista no cálculo das tarifas para 2016. O facto de a receita da CESE ter ficado aquém do esperado, não assegurando para já os tais 50 milhões de euros para o sistema elétrico, pode ser um argumento.

Mas há uma outra questão que tem de ser equacionada nesta análise. A transferência de uma parte da receita da CESE para fora do Estado, neste caso para uma entidade do sistema elétrico, tem impacto no défice do Estado quando é realizada, confirmou o Observador junto do Instituto Nacional de Estatística (INE). A demora na operação terá sido benéfica para o défice público de 2015. E em 2016? É esperar para ver.