Título: “Tempos Difíceis”
Autor: Charles Dickens
Editora: E-PRIMATUR
Páginas: 358
Preço: 18,90€
Não são raras as vezes em que alguém se depara com a situação curiosa de estar perante uma pessoa que defende ferozmente uma determinada doutrina ou ideal e que, apesar disso, pouco ou nada segue os preceitos desse ideal na vida quotidiana. Pense-se, por exemplo, nos teorizadores do feminismo que evitam interferir em casos concretos, nos cristãos doutrinadores que não praticam a caridade ou naqueles anti-capitalistas que se enchem de capitais. Até talvez em Dickens que, segundo uma acertada observação de Chesterton, “ao defender a felicidade, por momentos se esquece de ser feliz”. A afirmação certeira de Chesterton não define a personalidade de Dickens, nem mesmo a sua obra literária, mas somente o romance Tempos Difíceis (1854), editado recentemente pela E-Primatur, numa edição que apresenta simultaneamente uma tradução atenta, um dos melhores prefácios de Chesterton sobre Dickens e um conjunto de ilustrações de Harry French que acrescenta um delicioso toque oitocentista ao livro.
Neste prefácio, Chesterton diz que Tempos Difíceis é “o único lugar na sua obra onde ele [Dickens] não nos faz lembrar a felicidade humana pelo exemplo tal como pelo ensinamento”. Este desequilíbrio entre ensinamento e exemplo (especialmente curioso neste romance, tendo em conta a crítica que Dickens aqui faz à educação meramente teórica) pode explicar em parte as razões pelas quais o romance não se encontra entre aqueles que na obra de Dickens reúne mais consenso, pois se para indivíduos com vocações políticas, como George Orwell, este romance é esplendorosamente fascinante por ser ‘raiva em estado puro’, para outros, com menos inclinações políticas, é cativante por ainda possuir, para além dos momentos em que aparece essa ‘raiva em estado puro’, as características do estilo que celebrizou Dickens. Tempos Difíceis, sem nunca ser uma desilusão para os leitores mais fiéis de Dickens, interessará sobretudo àqueles que admiram o autor pelas suas convicções e pelas suas ideias a propósito da educação na sociedade vitoriana e dos perigos resultantes do triunfo da Revolução Industrial.
Estas duas coisas andam, aliás, sempre a par no romance. O processo de ensino que Dickens ataca apresenta características muito semelhantes a uma linha de montagem de uma qualquer fábrica, onde os alunos são meros “pequenos recipientes, ali ordenados, prontos a receberem galões imperiais de factos, vertidos sobre eles até estarem completamente cheios” (p. 23) por professores que “tinham saído recentemente, e ao mesmo tempo, da mesma fábrica, com os mesmos princípios, como outras tantas pernas de piano” (p.28). Produzir professores não é, então, nesta sociedade industrial, muito diferente de produzir pernas de piano ou qualquer outro produto, pois o que interessa é produzir e, preferencialmente, em quantidades massivas para satisfazer a classe consumista que se pode dar ao luxo de o ser. Um professor produz-se ensinando-lhe apenas factos para que ele os possa repetir aos seus futuros alunos, pois só os factos têm utilidade na vida. Esta é a filosofia da educação exposta no romance pelo pedagogo Gradgrind, personagem que Dickens utiliza para parodiar os métodos pedagógicos que foram adoptados por algumas escolas públicas de então e que privilegiavam apenas o processo de decorar factos. Neste tipo de ensino um cavalo tem de ser sempre definido por uma inflexível entrada de dicionário como, por exemplo:
Quadrúpede. Herbívoro. Quarenta dentes, designadamente vinte e quatro molares, quatro caninos e doze incisivos. Muda de pêlo na primavera; em regiões pantanosas, muda também os cascos. Cascos duros mas que precisam de ser calçados com ferro”
Daí que não seja de espantar que uma menina analfabeta filha de um domador de cavalos e criada no meio destes animais seja reprovada por não saber o que é precisamente um cavalo.
Este tipo de educação, ao não permitir que a razão se rebaixe “a cultivar sentimentos e afectos” (p. 72), visa a aniquilação da imaginação, essa faculdade que, para além de inútil, é perigosa, uma vez que tem a capacidade para alterar uma visão factual da vida, onde a única coisa que se deseja são “Factos, factos, factos, por toda a parte nos aspectos materiais da cidade; factos, factos, factos, por toda a parte nos seus aspectos imateriais” (p. 45), sendo esta a única ideia partilhada pelas dezoito confissões religiosas rivais de Coketown. A crítica que Dickens faz a este tipo de educação é particularmente interessante quando parodia os seus possíveis resultados através de exemplos grotescos como aquele em que um jovem educado segundo este sistema, depois de estar prestes a cometer um acto impiedoso, quando confrontado com a pergunta “não tem coração?”, responde:
A circulação, senhor (…) não poderia fazer-se sem um. Nenhum homem, senhor, familiarizado com os factos estabelecidos por Harvey relativos à circulação sanguínea pode duvidar de que eu tenha coração.” (p. 341).
O método pedagógico do senhor Gradgrind destruiu neste jovem uma das melhores faculdades de qualquer ser humano: a capacidade para compreender metáforas, por mais simples que estas sejam, e, consequentemente, a capacidade para fazer analogias e discriminar semelhanças e diferenças, ou seja, pensar criticamente.
No terreno
Deste modo, na cidade de Coketown tudo é aparentemente objectivo, inclusive o Tempo, pois é dito que durante o noivado entre duas personagens “nem os relógios corriam mais depressa, ou mais devagar, que em qualquer outra altura”. Digo ‘aparentemente’ porque são várias as vezes no romance em que Dickens nos mostra que a ‘realidade dos factos’ nada tem a ver com a ‘realidade’, pois aquilo a que os ‘Comissários do Facto’ chamam ‘realidade dos factos’ é nada mais do que um conjunto de estatísticas que não correspondem à realidade e que não ajuda a perceber coisa alguma, como se pode ver no episódio em que Gradgrind decide consultar as estatísticas sobre casamentos na Inglaterra para perceber se é sensato casar a sua filha com um homem muito mais velho do que ela.
Dickens usará esta discrepância, entre um conhecimento abstracto baseado em estatísticas e um conhecimento concreto baseado na observação, como ponto de partida para explicar os vários tipos de distância existentes entre os donos de Coketown e os Braços (nome dado aos operários deste aglomerado de fábricas imponentes e habitações débeis disfarçado de cidade) que para eles trabalham. Contrariamente a Gradgrind, que “não precisava de dar uma olhadela às formigantes miríades de seres humanos que havia à sua volta, podendo dispor dos seus destinos numa ardósia e secar todas as suas lágrimas com um pedaço sujo de esponja” (p.127), Dickens sentiu necessidade de conhecer o quotidiano destas cidades industriais antes de começar a escrever Tempos Difíceis, tendo mesmo visitado Preston poucos meses antes de iniciar a escrita do romance.
Sabendo isto, alguns estudiosos de Dickens fazem equivaler a cidade fictícia Coketown a Preston, como se Dickens não tivesse feito mais do que transpor para o romance a cidade do norte de Inglaterra. Fazendo-o, estes estudiosos acabam por elidir o talento descritivo do romancista ao nivelá-lo, por exemplo, com a descrição da cidade de Manchester feita por Friedrich Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Esta equivalência não faz qualquer tipo de justiça às descrições de Coketown presentes no livro, sendo qualquer uma delas o produto do virtuosismo artístico de Dickens e não um simples retrato de uma cidade industrial. Acrescente-se até que se há algo de profundamente singular na apresentação que Dickens faz desta cidade é o facto de nos apresentar a mesma de diversos pontos de vista. Aqui, não me refiro apenas a ‘diversos pontos de vista’ num sentido sociológico ou político (que Dickens não descura), mas também num sentido geográfico que, em certos momentos, acaba por dar expressão a esses dois outros sentidos.
Coketown começa por ser descrita como uma cidade de tijolo encarnado. Mas, imediatamente, Dickens, de forma subtil, corrige-se: “de tijolo encarnado se o fumo e as cinzas o tivessem permitido”. Esta correcção sugere o carácter artificial daquela cidade, mostrando-a desde logo como um produto totalmente humano em nada relacionado com a natureza. As características da cidade acabam por ser semelhantes ao tipo de trabalho que aí tem lugar “ruas compridas, todas muito semelhantes, e muitas ruas pequenas ainda mais semelhantes, habitadas por pessoas igualmente semelhantes (…) para as quais cada dia era igual ao dia de ontem e ao dia de amanhã e cada ano o sósia do dia anterior e do seguinte”, e isto tudo debaixo das “intermináveis serpentes de fumo que nunca chegavam a desenrolar-se” (p. 45). Este fumo constante que paira sobre a cidade acaba por isolar geográfica e socialmente aqueles que ali habitam do resto do mundo. Dickens salienta este isolamento de forma genial em dois pontos do romance: no primeiro, diz Dickens que a cidade vista ao longe não era de facto visível, mas sim deduzível, pois “era sabido que sem uma cidade não poderia existir aquela mancha fosca no panorama” (p.145); no segundo, quando Dickens sugere que para os habitantes da cidade é o resto do universo que é deduzível e não visível, como se constata no momento em que um dos operários de Coketown afirma saber por dedução que “há um céu por cima do fumo” (p. 189). Estando tão afastada do resto do mundo, não admira que Coketown tenha, para além de seres (os ‘Braços’) e leis próprias, um conjunto de mitos próprios, como aquele segundo o qual qualquer operário que expresse a mais ínfima das insatisfações está no fundo a exigir comer sopa de tartaruga e carne de veado com uma colher de oiro (p. 103), mito esse, claro está, originado e alimentado pelos patrões da cidade com o intuito de transformar operários insatisfeitos em ambiciosos sem escrúpulos.
Ciências políticas
Não se pense, porém, que o romance de Dickens é apenas uma defesa dos direitos dos operários e um ataque que visa exclusivamente atingir a ética patronal que então imperava e que, geralmente, é aquela que aparece esboçada sempre que se aborda um conjunto de temas que ficam reunidos pela etiqueta ‘capitalismo selvagem’. Dickens não se coíbe de atacar igualmente a política mesquinha levada a cabo pelo sindicalismo radical que proliferava nalgumas destas cidades, chegando mesmo a fazer com que determinada personagem seja estigmatizada pelos seus colegas operários apenas porque não segue cegamente as propostas apresentadas por estes, mesmo que tenha o cuidado de não as criticar. Naquele mundo mecanizado, aqueles que governam e aqueles que lhes fazem oposição partilham um carácter resultante da industrialização, pois esta, ao colocar a produção no centro de toda a existência, acaba por fazer com que o método de produção molde tudo à sua imagem e semelhança, inclusive o carácter dos indivíduos, que acaba por ser extremamente mecânico: se, por um lado, todos os patrões acreditam no mesmo mito, por outro lado, todos os operários concordam entre si sobre a maneira correcta de melhorar as suas vidas e, no fim, todos concordam que aquele que discorda de uns e de outros deve ser afastado. A discórdia ou a mera pausa para reflexão seriam defeitos na linha de produção responsáveis por consequências catastróficas para a manutenção do processo de produção.
O operário Stephen Blackpool é esse erro de produção, daí que a sua saída da cidade tenha de ser necessária para que a máquina continue a funcionar. Ele, na sua humanidade simples, mais do que a avareza do patrão Bounderby ou a raiva do sindicalista Slackbridge, é a verdadeira pedra na engrenagem daquele mundo. Porém, esta personagem, mesmo apesar de ser a ovelha tresmalhada, nunca chega a ser uma daquelas personagens inesquecíveis criadas por Dickens. Isto pode ser dito a respeito de qualquer uma das outras personagens do romance, todas elas demasiado simples e coladas à sua função na narrativa, mostrando que, contrariamente ao que fez noutros romances, Dickens estava demasiado preocupado com o seu funcionamento na estrutura global da acção ou com o seu valor simbólico enquanto representantes de uma determinada classe. Poderia, talvez, defender-se que, por uma questão de coerência, o mundo retratado no romance não permitiria uma exploração complexa da psique das personagens, mas esse argumento só funcionaria se Dickens mantivesse esse critério em todos os aspectos, o que não acontece, sobretudo nas transformações súbitas de carácter pouco verosímeis, por vezes completamente despropositadas, a que sujeita várias das personagens mais do que uma vez ao longo da narrativa. São, aliás, frequentes as vezes em que Dickens parece seguir o conselho do sindicalista Slackbridge, segundo o qual “os sentimentos particulares devem ceder à causa comum” (p. 183). Neste livro, essa ‘causa comum’ é claramente escrever um romance sobre os problemas de uma sociedade industrial, mesmo que se sacrifique aqui ou ali algumas das melhores qualidades literárias de Dickens, entre as quais, a criação de personagens inesquecíveis.
Felizmente, dirão alguns, para além disto há sempre aquele toque genial de Dickens, fazendo com que a meio de uma cena dramática uma personagem se exaspere com outra por esta andar à procura de uma vela que não é necessária (p. 123) ou que inesperadamente se encontrem frases como “sussurrava-se que a criada surda era rica” (p. 148). Quando Dickens se detém nestes pormenores, nota-se que a tal felicidade de que Chesterton fala no prefácio espreita por entre as linhas que compõem o ensinamento menos alegre de que podemos ser felizes se não deixarmos que Coketown se torne uma sinédoque do mundo.