Durante cerca de dois anos, Joanne Rowling caminhou pelas ruas do Porto com o manuscrito de Harry Potter e a Pedra Filosofal debaixo do braço. Foram dois anos intensos, cheios de incertezas, com momentos altos e outros que nem por isso. O casamento com o jornalista Jorge Arantes resultou num verdadeiro fracasso, deixando a britânica numa situação que ela própria haveria de descrever como “o fundo do poço”.
A temporada que passou em Portugal (18 meses no total) deixou uma marca tão profunda na autora que, ainda hoje, evita o assunto em entrevistas. No seu site, chamou-lhe o “período negro” da sua vida. Mas, claro, nem tudo foi mau. Além da sua primeira filha, Jessica, que nasceu durante o período que passou no Porto, Rowling viu nascer o projeto que haveria de mudar radicalmente a sua vida — Harry Potter.
Por esse motivo, no dia em que chega às livrarias Harry Potter and the Cursed Child, o guião original da peça homónima que estreou este sábado em Londres, lembramos como “Jo” chegou ao Porto e alguns dos lugares que foram importantes para Harry Potter.
A fuga para Portugal
J.K. Rowling mudou-se para o Porto depois da morte da mãe, Anne, em 1991, que há vários anos lutava com uma doença degenerativa, a esclerose múltipla. A morte de Anne Volant “deixou uma sombra de tristeza” na autora, que viria a exercer uma forte influência na criação da história de Harry Potter, um jovem feiticeiro que perdeu os pais ainda em bebé.
“Desesperada por fugir” — de Inglaterra, de tudo o que lhe fazia lembrar a mãe –, Rowling decidiu procurar uma saída. No jornal The Guardian, viu um anúncio de uma escola de língua portuguesa, que procurava uma professora de inglês. Decidiu responder e mudar-se para Portugal onde, durante cerca de dois anos, entre 1992 e 1993, trabalhou para a Encounter English, no Porto.
Consigo levou o manuscrito inacabado de Harry Potter esperando conseguir terminá-lo entre aulas. A história tinha surgido na sua cabeça dois anos antes, durante uma viagem de comboio com destino a Londres. J.K. Rowling escrevia há muito mas nunca tinha ficado tão entusiasmada com uma ideia nova. Se calhar porque, no fundo, sabia que se tratava de algo muito especial.
Sem uma caneta à mão, e demasiado envergonhada para pedir uma emprestada, deixou-se ficar ali sentada na sua carruagem a imaginar durante horas a fio as aventuras do jovem que era feiticeiro sem o saber.
Pouco mais de um ano depois da sua mudança para o Porto, a britânica conheceu Jorge Arantes no já desaparecido Meia Cave, na Ribeira. Foi amor à primeira vista. Os dois casaram-se pouco tempo depois, em outubro de 1992. Nos tempos livres, entre as aulas de inglês, Rowling vagueava de café em café, procurando inspiração nas ruas do Porto e tentando acabar o manuscrito de Harry Potter e a Pedra Filosofal, o livro inaugural da saga do feiticeiro.
Mas o casamento com Arantes estava condenado a ser um fracasso — “o maior fracasso” da vida da autora — e a estadia na cidade do Porto acabou por ser curta. Pouco mais de um ano depois de se terem conhecido, em dezembro de 1993, Rowling deixou o jornalista português e regressou ao Reino Unido com a filha bebé, Jessica.
O período que se seguiu foi um dos mais negros para J.K. Rowling. “Fracassar significou retirar tudo o que não era essencial. Parei de fingir que era outra coisa para além do que era, e concentrei toda a minha energia em acabar o único trabalhado que me interessava”, escreveu no seu site. Esse “único trabalho” era Harry Potter.
Para trás ficou o Porto — os cafés onde, entre cimbalinos, ia rabiscando as aventuras do jovem feiticeiro de cabelo desgrenhado e cicatriz em forma de raio na testa, a mítica Livraria Lello, com as suas intricadas escadarias em madeira, e os bares que frequentava com as amigas. Uma outra vida. Mas esses lugares, aos quais nunca mais voltou, ainda servem para recordar Rowling e a sua maior criação, um rapaz chamado Harry Potter.
O Porto de J.K. Rowling
1. Café Majestic
Diz a lenda que foi numa das mesas de mármore do mítico café portuense que a britânica terminou o primeiro rascunho de Harry Potter e a Pedra Filosofal. J.K. Rowling costumava frequentar o café na companhia do ex-marido, o jornalista Jorge Arantes.
A ligação de Rowling ao Majestic tornou-se tão conhecida que vários turistas já chegaram a sugerir que o café colocasse uma placa a assinalar que a autora passou por ali. “Mas não sabemos onde a pôr!”, admitiu à France-Presse Fernando Barrias, filho do dono do estabelecimento
Foi, aliás, no Porto que Rowling escreveu aquele que viria a ser o seu capítulo favorito do seu romance de estreia — “O Espelho dos Invisíveis”.
Para além do Café Majestic, na Rua de Santa Catarina, a britânica costumava também frequentar o restaurante Estrela d’Ouro, um estabelecimento com quase 70 anos localizado na Rua da Fábrica.
2. Livraria Lello & Irmão
A fama da Livraria Lello já correu mundo. Fundada em 1906 pelos irmãos Lello, a livraria da Rua das Carmelitas causou logo sensação. Assim que abriu as portas, a ela ocorreram de imediato inúmeros visitantes, curiosos para ver a obra, de estilo neo-gótico, do arquiteto Francisco Xavier Esteves, que ainda hoje se destaca na rua onde fica localizada.
Considerada várias vezes como uma das livrarias mais bonitas do mundo, a Livraria Lello já serviu de inspiração a vários escritores e artistas, incluindo a autora de Harry Potter. Como é mais do que sabido, a autora costumava frequentar o espaço e foi nas célebres escadarias de madeira da livraria que se inspirou para criar as escadas de Hogwarts, que teimam em não parar quietas e em conduzir os alunos a zonas do castelo a onde eles não pretendem ir.
É por esse motivo que a livraria portuense foi escolhida para o lançamento de Harry Potter and the Cursed Child. Para quem entra na Lello, é difícil não imaginar as intricadas escadarias da escola de feitiçaria.
3. Universidade do Porto
Na verdade, não é a universidade que é importante, mas sim os trajes que os alunos usam. Foi no traje académico portuense, não muito diferente do usado noutras cidades universitárias portuguesas, que J.K. Rowling se inspirou para criar as longas capas pretas que fazem parte da farda que usam os alunos de Hogwarts.
4. Discoteca Swing
Na primeira página de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, o terceiro livro da saga, pode ler-se: “Para Jill Prewett e Aine Kiely, as avós do Swing”. A dedicatória é uma das poucas referências feitas pela própria Rowling à temporada que viveu no Porto. Esta é dirigida às antigas colegas de casa da autora, a inglesa Jill Prewett e a irlandesa Aine Kiely.
Já o Swing, era uma antiga discoteca junto à rotunda da Boavista, onde “Jo” costumava ir com as colegas, também elas professoras na Encounter English. Outro bar que as três amigas costumavam frequentar era o Meia Cave, na Ribeira.
5. Jardins do Palácio de Cristal
Diz-se que um dos locais que Rowling costumava frequentar durante o tempo que viveu Porto — e onde terá chegado a escrever algumas partes de Harry Potter e a Pedra Filosofal —, eram os jardins do Palácio de Cristal.
Estes foram criados pelo arquiteto paisagístico alemão Émile David para envolverem o Palácio de Cristal, concebido pelo arquiteto Thomas Dillen Jones tendo como modelo o homónimo londrino. Inaugurado em 1865, o edifício foi demolido em 1951. No seu lugar foi construído o Pavilhão dos Desportos, hoje Pavilhão Rosa Mota.
Há até quem diga que foi nestes jardins que J.K. Rowling se inspirou para criar a Floresta Proibida. Apesar de rebuscado, não deixa de ser um pensamento bonito.