Ascenso Simões, antigo secretário de Estado de António Costa na pasta da Administração Interna, admitiu que foi “um erro grave” não seguir a mudança de paradigma na prevenção e combate aos incêndios florestais, defendida numa proposta técnica entregue ao governo em 2005. Numa tese de mestrado concluída em 2014, o ex-secretário de Estado da Administração Interna (2005-2007), reconhece que a proposta, que dava prioridade à componente de prevenção, acabou por não ser acolhida no plano que veio a ser aprovado pelo executivo de que fez parte, porque a “iniciativa política se mostrou voluntarista e descompensou um caminho coerente de intervenção” e porque se “manteve uma opção pelo derradeiro elemento da cadeia de valor — o combate”. Defendeu por isso, oito anos depois, e muito antes da crise que se vive neste verão, que “se tratou de um erro grave”.
Apesar destas ressalvas, a tese académica a que o Observador teve acesso, até faz um balanço favorável das alterações introduzidas a partir de 2005 na política de proteção da floresta e combate aos incêndios promovida pelos governos de José Sócrates e aponta os resultados positivos como a redução significativa da área ardida a seguir a 2005. Deixa ainda críticas à atuação do executivo seguinte, do PSD-CDS, que falhou a prevista avaliação e revisão do Plano Nacional de Defesa da Floresta e Combate aos Incêndios em 2012, deixando cair várias medidas de proteção da floresta que tinham sido adotadas, concluindo ainda que a “política florestal assume de novo a parentalidade pobre da governação”.
Não foi possível obter um comentário do atual deputado do PS sobre os pontos que defendeu na tese — Uma visão holística na segurança: Defesa da Floresta 2003/2007, que foi discutida e aprovada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro em 2015. Ascenso Simões fez a tese anos depois de ter saído do MAI onde foi também secretário de Estado da Proteção Civil (2007/2008) e, por fim, secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas (2008/2009).
Em 2005, Portugal vivia o terceiro ano muito complicado em matéria de incêndios florestais. Em setembro, o governo liderado por José Sócrates recebia a Proposta Técnica de Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios. O documento, pedido pelo executivo anterior, deveria servir de base ao futuro Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios e propunha uma viragem substancial à política até então seguida neste área.
Já esta quinta-feira, a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, anunciou a criação de um grupo de trabalho com o objetivo de preparar a reforma da floresta. Mas recuando a 2005.
A proposta, elaborada pelo Instituto Superior de Agronomia (ISA) partia do pressuposto base de que “a melhor maneira de combater um incêndio consiste em evitar que ele aconteça”.
O documento apontava para um conjunto de medidas que colocavam a prevenção no terreno como eixo principal de uma nova política que defendia ainda a separação entre a estratégia de combate virada para a defesa da floresta e a proteção de bens e pessoas, a cargo da Proteção Civil. A criação de uma nova autoridade vocacionada para proteger a floresta, com a integração vertical de competências, desde a prevenção e deteção até à primeira resposta, que dependesse diretamente de uma alta instância, como o primeiro-ministro, era outra medida defendida.
A proposta previa a criação de um corpo profissional autónomo para desenvolver as operações ligadas à proteção da floresta e propunha um investimento de 678 milhões de euros, a realizar até 2010 — a medida que mais custava era a criação de faixas de gestão de combustível (corredores em que o crescimento da vegetação seria controlado) e de proteção de zonas de interação entre a floresta e o meio urbano. Para além de um custo, que terá sido considerado elevado pelo poder político, o novo paradigma implicava também mexer na organização das entidades, dos poderes e dos dinheiros vocacionados para esta área.
Mudança de paradigma era correta, mas não teve apoio político
A proposta, que foi pedida pelo governo liderado por Santana Lopes, foi apresentada aos serviços do Ministério da Agricultura em setembro de 2005. Na sua discussão participaram também membros da Administração Interna, um ministério então liderado por António Costa e onde estava Ascenso Simões como secretário de Estado com a pasta. Oito anos mais tarde, numa tese de mestrado, o antigo secretário de Estado reconhece que esta proposta técnica do ISA, coordenada pelo professor José Miguel Cardoso Pereira, apresentava “uma visão correta do que se apresentava ao nosso país para promover uma mudança de paradigma”, que no entanto, “não veio a merecer o apoio que, reconhecidamente reivindicava”. Em causa, acrescenta, estava uma opção institucional e um calendário de execução de medidas orientadas para a prevenção e recuperação, pré-supressão e supressão e para as políticas florestal, fiscal e de ambiente.
Os ministérios da Agricultura e Administração Interna, então dirigidos por Jaime Silva e António Costa, respetivamente, determinaram a criação de uma unidade de missão que teve como tarefa “apresentar uma proposta política de Plano de Defesa da Floresta e Combate aos Incêndios (PDFCI) mais adequada à realidade institucional que se vivia”.
Ascenso Simões reconhece por isso, nas conclusão da sua tese que: “Passados 8 anos importa considerar que se tratou de um erro grave” E aponta três razões:
“Em primeiro lugar porque a proposta técnica tinha uma sustentação que a Resolução do Conselho de Ministros não viria a adquirir, em segundo tempo porque a iniciativa política se mostrou voluntarista e descompensou um caminho coerente de intervenção; por último e em terceiro lugar, porque se manteve uma opção pelo derradeiro elemento da cadeia de valor — o combate”.
Ora foi precisamente esta a prioridade assumida pelo então ministro da Administração Interna, António Costa, que quando esta proposta estava a ser discutida anunciou a intenção de lançar com concurso público para a compra ou aluguer de meios aéreos de combate aos incêndios. É certo que o reforço dos meios de combate, não significa necessariamente que se deixe cair a componente de prevenção, mas a realidade dos anos seguintes veio a mostrar um fosso crescente entre os meios financeiros mobilizados para o combate aos fogos e os que têm sido canalizados para a prevenção e reflorestação.
Na tese “Uma visão holística na segurança: Defesa da floresta 2003/2007”, Ascenso Simões propõe-se analisar a resposta política ao ciclo de incêndios vividos entre 2003 e 2005 que causaram “um grave problema de segurança interna e uma preocupante delapidação do património ambiental decorrentes dos incêndios florestais”. Apesar do “erro grave” que refere nas conclusões, o balanço geral feito da intervenção política sobre o tema, e da qual foi parte enquanto secretário de Estado da Administração Interna entre 2005 e 2007, é positivo.
“A partir de 2005 foi promovida uma reforma integrada que levaria a uma alteração de paradigma. Os três pilares da defesa da floresta, assumidos pelo Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, observaram mudanças muito significativas que tiveram resultados na área ardida e nos impactos económicos, sociais e ambientais”.
Destacando as reformas na intervenção e no combate aos fogos, desenvolvidas entre 2005 e 2007, as alterações na orgânica da prevenção, deteção e vigilância e as modificações na estrutura de planeamento e prevenção, a tese académica procurou demonstrar que “Portugal encontrou um caminho para resolver um problema grave que se colocava a toda a sociedade e, pela primeira vez, as metas determinadas foram cumpridas sem derrapagens”.
Um dos progressos assinalados nas conclusões foi a redução da área ardida que ascendeu a 829.527 hectares entre 2003 e 2005, tendo sido de 328.878 hectares nos cinco anos seguintes, um valor médio anual que foi inferior à meta definida no PNDFCI, abaixo dos cem mil hectares por ano. A proposta técnica do ISA apontava para um objetivo mais ambicioso, inferior a 50 mil hectares por ano de área ardida.
São ainda sublinhados várias mudanças positivas ao nível da prevenção — como criação da Autoridade Florestal Nacional (atual Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas), e da resposta aos incêndios — como a criação da Autoridade Nacional de Proteção Civil, que centraliza o comando das operação de combate no terreno.
Ascenso Simões é muito mais critico quando avalia o desempenho do dispositivo de defesa da floresta a partir de 2011, quando tomou posse o governo de coligação PSD/CDS, e Portugal estava sob assistência internacional. Aponta várias medidas e políticas que foram caindo ou sendo desmobilizadas até 2013 — como o Dispositivo de Prevenção Estrutural para a gestão da floresta, os gabinetes técnicos supramunicipais, responsáveis por planos de distritais de defesa da floresta, a transformação em equipas sazonais dos técnicos de fogo controlado e a redução em 50% no valor do Fundo Florestal Permanente.
O ex-secretário de Estado alerta ainda para a falha na avaliação e revisão do Plano Nacional de Defesa da Floresta e Contra os Incêndios, para conferir o cumprimento das metas e redefinir objetivos, e que deveria ter acontecido em 2012. Pela informação pública, esta revisão ainda não foi feita. O último documento disponível é de 2010.