A Câmara Municipal de Lisboa foi aconselhada em março deste ano a não usar o pavimento proposto pela empresa (Consulpav) que está no centro do polémico cancelamento das obras da Segunda Circular. Motivos? O pavimento não está suficientemente estudado em Portugal e, além disso, esses estudos podiam atrasar as obras, cuja conclusão estava prevista para o verão do próximo ano. A autarquia, no entanto, optou por ignorar este conselho e deixou o processo seguir. Cerca de cinco meses depois, o executivo camarário decidiu cancelar as obras com base num alegado conflito de interesses que envolve precisamente a Consulpav.

A empresa em causa faz projetos e presta consultoria na área dos pavimentos. É também, desde janeiro, fabricante e vendedora de borracha distendida e reagida, um material que se retira de pneus reciclados e que pode ser usado para fazer pavimentos rodoviários. Foi precisamente esse material que a Consulpav aconselhou a câmara a usar nas obras de reabilitação da Segunda Circular. Depois desse aconselhamento, a mesma empresa passou de consultora a vendedora do produto, pelo que a autarquia decidiu, na sexta-feira, anular as obras.

Mas as dúvidas que envolvem esta empresa não eram apenas essas. Já em março, um relatório de avaliação do projeto, feito por uma empresa externa, alertou a câmara para os potenciais riscos da utilização do material aconselhado pela Consulpav. “É importante notar que este tipo de tecnologia não foi ainda aplicada em Portugal, não havendo deste modo experiência acumulada suficiente para atestar do seu bom comportamento e aferir das adequadas condições da sua aplicação”, lê-se no documento, a que o Observador teve acesso. Os autores sublinhavam a importância de fazer estudos adicionais, mas alertavam “para que os prazos de execução destes estudos de formulação” pudessem “não ser compatíveis com os prazos de execução da empreitada, podendo desta forma conduzir a um atraso nos trabalhos.”

Os autores do relatório não tiveram dúvidas:

“Considera-se que a experimentação deste tipo de solução inovadora, independente do seu potencial, deveria ser reservada a vias de menor importância e com menor exposição pública e política e com melhores condições de execução.”

Confrontada com a existência desta avaliação, a autarquia respondeu através do departamento de comunicação que “o relatório que o Observador cita não levanta qualquer objeção técnica sobre esta solução, concentrando-se antes num juízo de valor sobre o facto de o material nunca ter sido testado em Portugal numa obra com esta dimensão”. Salientando que o relatório — elaborado pela empresa de engenharia Viaponte — se trata de uma “opinião técnica, consultiva e sem caráter deliberativo”, o município acrescenta:

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“Não será a primeira, nem a segunda ou terceira vez que a Câmara Municipal de Lisboa recorre a soluções técnicas inovadoras em Portugal. Se todas as soluções inovadoras no nosso país fossem rejeitadas, por esse facto apenas, a CML ainda continuaria a usar soluções técnicas do século passado, desatualizadas e menos confortáveis para os cidadãos.”

Note-se, no entanto, que o relatório não dizia que a referida “solução técnica inovadora” não devia ser aplicada — aconselhava apenas a que isso fosse feito em “vias de menor importância”. A câmara garante ainda que “não está prevista” qualquer revisão ao projeto, embora não garanta, para já, que esta solução técnica para os pavimentos seja mantida nos planos futuros para a Segunda Circular.

No decorrer do processo, a questão da repavimentação da estrada foi sempre referida como um dos pontos prioritários da requalificação do eixo, tanto pelo vereador responsável como pelo presidente da câmara. Em dezembro, no Público, Manuel Salgado, sublinhava “a reabilitação da fundação nos locais mais degradados e reposição do pavimento com soluções altamente resistentes e muito redutoras das emissões de ruído”. E, em abril passado, na SIC Notícias, já tendo nas mãos o relatório que desaconselhava aquele pavimento específico, Fernando Medina também apontava como objetivo do “asfaltamento completo” da Segunda Circular colocar “um pavimento antirruído e com mais capacidade de aderência”. O autarca já se referia à solução que constava no projeto.

Conflito de interesses?

Na sexta-feira passada, na conferência de imprensa em que anunciou a suspensão das obras que já decorrem num pequeno troço da Segunda Circular e a anulação do concurso público para a restante via, Fernando Medina disse que o júri do concurso detetou “indícios de conflito de interesses, pelo facto de o autor do projeto de pavimentos ser também fabricante e comercializador de um dos componentes utilizados”. Segundo o autarca, a câmara não sabia disso “aquando do lançamento do concurso”.

A reabilitação da Segunda Circular está a ser pensada na câmara há vários anos, mas os trabalhos mais constantes começaram em meados do ano passado. A 17 de setembro de 2015, a autarquia contratou uma empresa de engenharia para desenhar o projeto. E foi esta empresa, a Coteprol, que contratou a Consulpav como consultora na área dos pavimentos. A câmara municipal e a Consulpav nunca se contactaram diretamente.

O prazo para a entrega do projeto terminou a 17 de janeiro deste ano, mas a Coteprol deu-o à autarquia a 23 de dezembro, uma semana depois de Fernando Medina anunciar as obras publicamente. A 26 de janeiro, a Consulpav fez uma alteração ao seu contrato de sociedade: além de consultoria, passou também a dedicar-se ao “fabrico e comercialização de borracha distendida e reagida proveniente da valorização de borracha reciclada de pneus de carros ou camiões e de outros óleos e de fillers minerais”.

Em março, dois dias depois de o relatório de avaliação do projeto ter sido escrito, a câmara decidiu dividir a obra em duas partes e lançou o concurso público para uma delas, de pouco mais de um quilómetro de extensão. “Não foi possível afastar as dúvidas” de que esse concurso não tenha sido viciado, disse Medina na sexta-feira. Nas respostas ao Observador esta segunda-feira, a câmara salienta que a decisão de cancelar as obras foi tomada depois de a Coteprol ter sido confrontada com o duplo estatuto da Consulpav.

A Consulpav pertence a Jorge Barreira de Sousa, um engenheiro e especialista mundial em soluções de asfalto com borracha. É igualmente membro da direção da Rubberized Asphalt Foundation (RAF), uma fundação que se dedica a estudar formas de usar borracha em pavimentos rodoviários. No site da organização, Jorge Sousa é apresentado como a pessoa que introduziu essa inovação em Portugal. Atualmente, o presidente da RAF, o americano George Way, é o diretor-geral da Consulpav International.

Contactado pelo Observador, Jorge Sousa disse que não tem comentários a fazer. Também não foi possível obter esclarecimentos da Coteprol.

Oposição surfa a onda

Para Fernando Nunes da Silva, ex-vereador da Mobilidade do executivo camarário de António Costa, “carece de uma explicação muito cabal porque é que se põe em causa” todo o projeto quando apenas há dúvidas no que diz respeito ao pavimento. Para Nunes da Silva, a câmara poderia “deixar correr as obras nas outras vertentes” e negociar diretamente com o empreiteiro uma solução que não envolvesse um potencial conflito de interesses. “Houve mais que tempo para isto ser esclarecido anteriormente”, argumenta o ex-vereador.

O vice-presidente da autarquia, Duarte Cordeiro, garante ao Observador que a CML agiu nesta altura porque “só agora o júri emitiu o relatório final” do concurso público — que não se conhece publicamente. Duarte Cordeiro atira mesmo a Nunes da Silva, ainda que não o nomeie: “Há pessoas que ou estão a falar sem saber ou estão a ser irresponsáveis”. “Não havia alternativa, era impensável prosseguir uma obra quando o júri diz que há um conflito de interesses”.

As obras de requalificação da Segunda Circular foram anunciadas no fim de dezembro e tinham um custo estimado inicial de 10 milhões de euros. Depois de um grande debate público que durou perto de dois meses, a câmara apresentou uma proposta de trabalhos para apenas uma parte da via e que, além disso, era cerca de três milhões de euros mais cara do que o inicialmente previsto. As obras no restante percurso foram adjudicadas sem discussão pública ou entre vereadores.

Na câmara, a oposição alinha sobretudo pela acusação de “precipitação” do executivo neste processo. No PSD, o vereador António Prôa diz que este processo “foi mal planeado e deficientemente projetado”, mas ainda assim aponta vantagens: “O cancelamento vai poupar os lisboetas a uma overdose insuportável de obras na cidade”. E o CDS já pediu formalmente a Medina “o envio urgente do relatório do júri, bem como as respetivas reclamações, denúncias e quaisquer outros elementos que constem do processo”.

Ao Observador, o vereador do CDS João Gonçalves Pereira diz que existe um “défice de prestação de informação por parte do presidente da câmara” e desafia-o a marcar uma reunião extraordinária: “Afinal, há em média uma reunião de urgência de dois em dois meses”. Enquanto aguarda pela primeira reunião pós-férias (na próxima semana), o democrata-cristão vai acusando Medina de “falta de bom senso”, num processo em que o “número de obras em simultâneo só podia correr mal”. Por isso, o CDS quer saber se existe um parecer jurídico do departamento competente da Câmara que sustente a decisão tomada na sexta-feira passada, em que outros concursos da Câmara participou a Consulpav e quais as consequências financeiras e jurídicas da anulação do concurso público.

A proposta de Fernando Medina tem de ser votada numa reunião de câmara e a questão dos custos que possa vir a acarretar não preocupa apenas o CDS, também o PCP fala neles. O vereador João Ferreira levanta a questão: “Esperemos que os custos [financeiros] não recaiam também sobre os lisboetas”. O comunista também considera que há informação em falta e aguarda que seja disponibilizada pelo presidente da câmara. Entretanto, vai apontando o dedo: “Terá havido alguma falta de cuidado em todo o procedimento concursal, que terá levado a que a questão não tivesse sido detetada antes”. “Se tivesse havido outro rigor em todo o procedimento, teria sido possível detetar mais cedo este conflito de interesses”, considera João Ferreira em declarações ao Observador. No entanto, o comunista lamenta a paragem da requalificação, apontando esse como o primeiro “prejuízo claro” desta decisão de Fernando Medina.