António Guterres é maratonista, Marcelo um velocista. Sai primeiro, chega primeiro. Nada de diferente no primeiro 5 de Outubro do Presidente Marcelo. Era rápido (“à Marcelo”, com dizem os jornalistas) que o Presidente da República tinha previsto ir esta quarta-feira da Academia Militar, na Estefânia, até à mercearia social Valor Humano, a menos de um quilómetro. Mas não foi. Pelo caminho, recebia a melhor notícia do dia: o cargo de secretário-geral da ONU já não escapava ao amigo António. Era tempo de dar mais uma volta de carro ao quarteirão para ligar ao sucessor de Ban Ki-moon. Conversaram, mas nem assim o Presidente chegou atrasado: na República de Marcelo há tempo para tudo.

Antes do tsunami ONU, que invadiu a atualidade, já o dia de Marcelo ia longo. Começou na Praça do Município, sem percalços. A bandeira foi içada “direitinha”, como apontou um popular junto às grades de segurança, não havendo o azar que levou a que o seu antecessor, Cavaco Silva, e o então autarca António Costa (também esta quarta-feira em estreia como primeiro-ministro num 5 de Outubro) fossem alvo de chacota.

Hino tocado, hora de Marcelo discursar para demonstrar que a política de Belém não é só afetos. É alternada: avisos, afetos, avisos, afetos. Num discurso de sete minutos, Marcelo optou pelo aviso: os políticos têm de ser mais humildes.

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A razão de ser de desconfianças e desilusões e descrença é outra. Tem a ver com o cansaço perante casos a mais de princípios vividos a menos. De cada vez que um responsável público se deslumbra com o poder, se acha o centro do mundo, se permite admitir dependências pessoais ou funcionais, se distancia dos governados, aparenta considerar-se eterno, alimenta clientelas, redes de influências de promoção social — económicas ou políticas –, de cada vez que isso acontece, é a democracia que sofre, é o 5 de Outubro que se empobrece ou esvazia”

Neste caso, importava sol ou sombra, e — ao contrário das principais figuras do Estado e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina — os convidados e os populares estavam debaixo de um calor intenso. Por sorte, a cerimónia terminou quinze minutos antes do previsto.

A primeira mensagem de 5 de Outubro de Marcelo estava dada. Cuidado com a descrença dos políticos. Minutos depois, Passos Coelho quase saía despercebido, deixando o palco ao secretário-geral, Matos Rosa. Não conseguiu. Há quem não lhe perdoe os anos de austeridade e, bastam duas pessoas para haver apupos: “Fascista, xô daqui para fora, vai-te embora“, grita uma aposentada.

A ofensa partiu de Maria Isabel, reformada da função pública com 85 anos, que lembrou em declarações ao Observador: “Faz hoje um ano em que o povo não podia estar aqui. E porquê? Porque ele tirou o feriado, que é uma coisa que não custa dinheiro nenhum”.

Irritada com a presença de Passos Coelho, Maria Isabel explica que não perdoa ao anterior governo “ter cortado pensões. Foi este [Passos Coelho] e o Portas. Que cortaram nos pensionistas em vez de cortarem nos mais ricos. Então isso não é ser fascista?”

Prontamente, um casal, que não se quis identificar, tentou defender Passos Coelho: “Não vê que não havia dinheiro, ele não podia fazer mais”. O burburinho estendeu-se a outra popular de idade, que tentou refrear os ânimos: “Eles têm todos é um grande patoá. São todos iguais. Não se zanguem por causa disso“. O reboliço acabou, mas precisamente com a ideia de que o Presidente quis combater no púlpito minutos antes: que os políticos devem mostrar que não são todos iguais.

E não são. Marcelo, regra geral, vai recebendo em troco o afeto que dá e, durante esta quarta-feira, não foi diferente. “Viva a República. Viva o nosso Presidente!”. Uma das pessoas que gritou vivas a Marcelo foi Sónia Ramires, uma luso-brasileira a viver no país há 43 anos. Veio de Porto Alegre, no Brasil, “ainda no tempo do fascismo” e desde então nunca viu “um presidente tão bom”. Já seguia o “professor” como comentador na televisão e assume-se como fã do presidente.

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Marcelo Presidente Versus Marcelo comentador

Próxima paragem: Liga dos Combatentes. Ainda antes do almoço, o Presidente foi visitar esta associação centenária, sediada no Bairro Alto e, como é seu hábito, discursou mesmo sem estar previsto. Antes disso descerrou uma placa que ficou à esquerda de uma outra mais à direita, descerrada por Cavaco Silva quando era presidente.

Também ali Marcelo distribuiu afetos por todos e prometeu — após ouvir a intervenção do presidente da instituição, o general Chito Rodrigues — que não deixará de fazer valer a influência que tem como presidente para que as reivindicações da associação sejam atendidas pelo ministério da Defesa e pelas chefias militares. Lá está a sequência: afetos, avisos.

Cão do Presidente treinado para guardar palácio

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O cão que a Força Aérea ofereceu a Marcelo Rebelo de Sousa, o Asa, está a ser treinado pela esquadra presidencial da Guarda Nacional Republicana para também ele fazer parte da equipa. A ideia é que o Asa, assim que termine o treino, passe a fazer as rondas noturnas ao palácio de Belém.

Ao seu lado estava o secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello. Há alguns meses, já em Belém, Marcelo tinha sido fotografado ao lado do antigo número dois de António Costa na câmara de Lisboa e do cão Asa, oferecido pela força aérea a Belém. Também para este, o Presidente definiu um futuro.

Marcelo citou o hino da Liga dos Combatentes para dizer: “Amanhã também é dia, amanhã começa agora, começa hoje“. O Presidente nunca deixa para o dia seguinte o que pode fazer no momento e prometeu que irá atribuir à associação, já a 11 de novembro (Dia do Armistício), as insígnias de membro honorário da Ordem do Mérito.

Pelo meio, apareceu Marcelo comentador, a avisar que quando se referia a “casos” no seu discurso não era para abanar fantasmas do passado, mas para que eles não aconteçam daqui para a frente. “O Presidente”, disse Marcelo falando na terceira pessoa, fez “há pouco nos Paços do Concelho” um discurso “intencionalmente virado para o futuro“, que não se esgota no “plano do passado”, mas traz “exigências viradas para o futuro.”

Marcelo picou, os jornalistas foram atrás e à saída não perdoaram. A que casos se referia? A mensagem era para alguém? Quem? O Presidente quis matar por ali as especulações: “Foi um apelo geral“. E lá entrou no carro, à velocista.

Antes disso, tinha parado para assinar o livro de honra da Liga dos Combatentes. A escrever, já se sabe, também é rápido.

A agenda só retomava às 15h00, mas para o Presidente não há agenda. O trânsito num caos, alguns automobilistas a maldizerem o homem que de manhã hasteou a bandeira ao seu lado (Fernando Medina), mas Marcelo ainda teve tempo — apurou o Observador — para almoçar com a família no Chiado e para “dar um pulo” ao MAAT, o recém-aberto Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, para ver se tudo estava a correr bem.

O comandante não esquece os comandos

Nem assim chegou à parada atrasado. Distribuiu espadas e afetos, mas também um aviso, desta vez ao lado do ministro da Defesa, Azeredo Lopes. “Com o governo e as vossas chefias garanto que nada do que tem de ser apurado e decidido, fica por apurar e decidir“, disse o Comandante Supremo das Forças Armadas perante centenas de militares. Referia-se ao curso de formação comandos, abalado pela morte de dois aspirantes a comandos. A cerimónia decorreu no campo de futebol da Academia Militar e, no fim, o Presidente foi solicitado para fotos, selfies e afins. Até para uma entrevista à Arroios TV, um canal da junta de freguesia de Arroios que funciona através do Youtube. Apesar do calor abrasador, o chefe de Estado foi incapaz de recusar o pedido.

Marcelo a ser entrevistado pela Arroios TV

Marcelo a ser entrevistado pela Arroios TV

O tsunami ONU e as garrafas de azeite

Ao sair da Academia militar, o Presidente teve então a boa notícia e ligou a Guterres. Foi tão rápido que surpreendeu o próprio. “Ele [António Guterres] perguntou-me como tinha ficado a votação”, confidenciou o Presidente. Deu-se a “boa coincidência”: “Nada melhor do que uma notícia destas no dia 5 de Outubro, no dia da República”. A atualidade noticiosa passou a ser dominada pela quase-quase-certa ida de António Guterres para as Nações Unidas. Mas Marcelo manteve a serenidade.

Tinha uma visita programada à mercearia social Valor Humano e manteve a rota definida, sem pressa para reagir à notícia. Muito afeto e um aviso: “A democracia não se faz só de eleições e para políticos serem eleitos numa democracia quer-se justiça social”.

O presidente levava uma nota no bolso (“vinha preparado para dar dinheiro”, disse), mas mudou de ideias para doar de outra forma, mais ao jeito da associação: “Um destes dias desembarco aí não sei quantas garrafas de azeite e não sei quantas garrafas de óleo”. Depois desta pequena intervenção, em que elogiou os responsáveis da associação, os jornalistas prepararam-se para a tão aguardada declaração. Marcelo não tinha pressa. Mais uma selfie com uma criança, mais uma brincadeira: “Bem, estes óculos têm cá uma categoria…”.

O dia era de ONU e Marcelo sabia-o. Disse logo aos jornalistas: “Já sei o que vocês querem”. E sabia. O dia avançou e às sete da tarde foi tempo de condecorações a quatro figuras: o poeta e histórico socialista Manuel Alegre, o antigo presidente do Tribunal Constitucional, Joaquim Sousa Ribeiro, o ex-presidente do Parlamento, António Barbosa de Melo (a título póstumo) e o ex-presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins. Esta última condecoração não era para ser já atribuída, mas acabou por ser anunciada no início da semana.

A sala estava cheia de políticos e outras individualidades. Quanto a condecorações, seguiu-se o protocolo e pouco mais. Poucos queriam saber de ordens e faixas. O primeiro-ministro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, a ex-presidente do PS, Maria de Belém, o próprio condecorado Guilherme d’Oliveira Martins falaram muito à comunicação social, mas sobre o assunto do dia: a ida de um português para o mais alto cargo na ONU. Afinal, na República de Marcelo, os políticos têm de ser diferentes: como Guterres.

O dia foi longo e o discurso do Presidente no 5 de Outubro elogiado por todos, mas para a História fica aquela volta que deu a mais com o carro e, claro, a chamada para o amigo António.